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Crítica | Hamlet (1948)

por Ritter Fan
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Se alguém pode de certa forma criticar negativamente o trabalho de roteiro e direção de Laurence Olivier em Hamlet, o mesmo não é possível com sua atuação. No papel principal, o ator demonstra a razão de ele ser considerado um dos maiores atores que já viveu. Mesmo com diversos outros atores importantes tendo encarnado o atormentado príncipe dinamarquês, o trabalho de Olivier é inesquecível e absolutamente arrasador.

Em 155 minutos, Olivier compõe seu problemático personagem com muita calma e precisão. Desde os minutos iniciais, com ele sentado em uma cadeira diante de seu tio Claudius (Basil Sydney), o atual rei, recém-casado com sua mãe, Gertrude (Eileen Herlie), apenas dois meses da morte de seu pai, passando por seu destruidor diálogo com o fantasma de seu pai, o mais destruidor ainda diálogo com a bela e frágil Ophelia (Jean Simmons) e o inacreditável embate de espadas com Laertes (Terence Morgan), ao final, temos a oportunidade de mergulhar na complicada mente de Hamlet e passamos ao mesmo tempo a amá-lo e a odiá-lo, mas sempre sofremos por ele. É uma das composições artísticas mais fantásticas que já grassou a tela grande.

Dito isso, Olivier também adaptou a obra original de Shakespeare e dirigiu o filme, que é a primeira adaptação cinematográfica sonora da peça em inglês (a primeira adaptação sonora em qualquer língua é, por incrível que pareça, indiana). Sempre considerei e ainda considero essa película como a adaptação definitiva da dificílima – e gigantesca – peça do bardo inglês.

No entanto, esse raciocínio não é sem controvérsias. Olivier, ao escrever o roteiro (pelo que, estranhamente, ele não recebeu créditos na projeção), reduziu basicamente pela metade o texto original, extirpando toda a questão política envolvendo Fortinbras e a iminente invasão norueguesa e também os dois famosos espiões do rei, Rosencrantz e Guildenstern. Esses três personagens inexistem nessa adaptação e, para quem leu e aprecia a obra original, talvez essas faltas sejam inaceitáveis. No entanto, a jogada de mestre de Olivier é que ele simplesmente consegue fazer com que todas as linhas narrativas envolvendo esses personagens não façam falta.

No lugar de entrar em questões políticas e de usar alívio cômico, Olivier inteligentemente mergulha na psique de Hamlet e, para isso, usa dois artifícios perfeitos. Em primeiro lugar, ele amplifica o complexo edipiano que é apenas tratado de soslaio por Shakespeare. Usando uma bela atriz 11 anos mais nova que ele para fazer o papel de sua mãe, trabalhando figurinos provocantes (dentro do limite do razoável para a época, claro) e criando contatos carnais entre rainha e príncipe, Olivier destaca a confusão mental de Hamlet e como ele lida com isso.

Outro aspecto usado para mostrar a complexidade da mente do protagonista é o uso de cenários cavernosos e sinuosos, além da profundidade de campo máxima. Com isso, o espaço do castelo lembra fortemente obras do expressionismo alemão, com escadas íngremes e gigantescas que não levam a lugar algum, salas altíssimas e corredores intermináveis, tudo para criar uma espécie de simetria com o que se passa no âmago de Hamlet. Reparem, por exemplo, como o uso de escadarias de certa forma emula o que é possível ver no incrível O Gabinete do Dr. Caligari e como as passagens fantasmagóricas, cheias de neblina e escuridão, lembram Nosferatu, de Murnau. Há também um quê de filme noir em determinadas passagens, o que só acrescenta à atmosfera sombria e tenebrosa que Olivier quer passar.

No quesito figurino, Hamlet também se sobressai. Cada roupa tem sua personalidade e acrescenta ao momento em que ela é mostrada. A rebuscada vestimenta real de Laertes contrasta fortemente com os trajes mais simples do próprio Hamlet, príncipe da Dinamarca, demonstrando o abismo que existe entre os dois e já servindo de foreshadowing para o embate final. O mesmo vale para os vestidos angelicais de Ophelia que, ao longo do tempo vão se deteriorando juntamente com sua mente e os já mencionados vestidos sensuais de Gertrude, que intensificam a relação edipiana entre príncipe e rainha. Tudo é pensado em detalhes para que cada elemento expresse o estado psicológico dos personagens. O mesmo vale para a contundente e majestosa trilha sonora de William Walton – uma das melhores do compositor – usada de forma percuciente por Olivier em momentos-chave, como nas tomadas de escadarias intermináveis em loop, tomadas em gruas distanciando o espectador da ação ou fazendo o espectador subir as paredes do castelo de Elsinore.

Assim, mesmo que seja visível o caminho, digamos, mais “simplificado” que Olivier toma em relação à obra original, fato é que esse caminho tem também suas complexidades e a análise do estado mental dos personagens, com o uso de solilóquios que variam entre aqueles apenas na mente do personagem e outros falando, alguns até alternando entre pensamento e fala (como o famoso “Ser ou não ser”), contribuem para uma fantástica atmosfera. Se esse Hamlet tem defeitos, eles só existem na mente dos mais puristas que exigem total imutabilidade da obra de Shakespeare, algo que pode ser preferível, mas que não se coaduna com a arte de adaptar obras de um meio para outro meio.

A verdade, porém, é que Olivier teve a coragem – e a inteligência – de, respeitando o espírito de um clássico da dramaturgia mundial, criar uma obra instigante com traços autorais próprios. Ele foi ousado? Certamente! Ele foi herege? Não, mas se foi, aplausos para ele. A Sétima Arte precisa de mais hereges brilhantes assim. O resultado é uma das obras cinematográficas mais fantásticas já realizadas e uma das adaptações mais belas – quiçá a mais bela – de uma tragédia shakespeariana.

Hamlet (Idem, Reino Unido – 1948)
Direção: Laurence Olivier
Roteiro: Laurence Olivier (baseado em peça de William Shakespeare)
Elenco: Laurence Olivier, Basil Sydney, Eileen Herlie, Norman Wooland, Felix Aylmer, Patrick Troughton, Tony Tarver, John Laurie, Esmond Knight, Anthony Quayle, Terence Morgan, Jean Simmons
Duração: 155 min.

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