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Crítica | Hamnet: A Vida Antes de Hamlet

O vazio por trás da beleza.

por Fernando Campos
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Conhecer as motivações de um artista é, muitas vezes, uma etapa crucial para compreender uma obra. Não porque o trabalho deva ser reduzido à biografia de quem o criou, uma vez concluída, a obra pertence ao olhar do público; mas porque certas escolhas estéticas e narrativas ganham novas camadas quando observadas à luz de seu contexto. Trata-se de entender o tempo, as circunstâncias, os impulsos e as dores que atravessam um gesto criativo. Hoje, com a profusão de entrevistas e materiais promocionais, esse acesso parece simples. Já diante dos grandes clássicos, o caminho é outro: recorremos à biografia, a diários ou ao contexto histórico. Em muitos casos, a própria obra é a única pista possível para compreender seu autor e, não raro, foi também a forma que ele encontrou para elaborar aquilo que não podia ser dito de outra maneira. Saber, por exemplo, que Shakespeare atravessava um luto profundo no período próximo à escrita de Hamlet torna a experiência da peça ainda mais sombria, dilacerante e arrebatadora.

A complexidade e a força dramática da obra de Shakespeare atravessaram séculos, inspirando leituras, releituras e estudos intermináveis. Foi a partir desse intervalo de dor que Maggie O’Farrell escreveu o romance Hamnet, imaginando como a morte do filho teria repercutido intimamente na vida do dramaturgo e, por extensão, na criação de sua tragédia mais célebre. Como frequentemente acontece na história da arte, especialmente no cinema, uma obra leva a outra. A adaptação cinematográfica acabou nas mãos da oscarizada Chloé Zhao. A pergunta, portanto, não é apenas o que Hamnet: A Vida Antes de Hamlet conta, mas por que essa história é contada agora e o que Zhao pretende extrair desse mito fundacional.

O filme acompanha a família de William Shakespeare (Paul Mescal), com atenção especial à esposa, Agnes (Jessie Buckley). Após a morte do filho gêmeo, Hamnet, o núcleo familiar se fragmenta sob o peso de um luto devastador. Distante como marido e pai, Shakespeare encontra na escrita um canal para reorganizar a dor, sentimento que, mais tarde, se transformará em Hamlet.

A obra inicia evocando diretamente a peça: uma floresta densa, quase teatral, com uma abertura central que sugere um palco ou um portal. Zhao busca estabelecer paralelos e ecos entre as duas obras, mas essa aproximação acaba se tornando um entrave. Shakespeare operava na ambiguidade, no símbolo, na poesia trágica. Aqui, a cineasta opta por uma literalidade excessiva, que empobrece a experiência. Os diálogos se repetem em frases esquemáticas, por exemplo, “você deveria estar aqui”, “eu fiz tudo o que podia”, como se o filme precisasse sublinhar constantemente emoções que nunca se organizam dramaticamente.

O roteiro soa raso a ponto de comprometer a própria construção dos personagens. É difícil acreditar no gênio criativo de Will ou no suposto conhecimento ancestral de Agnes sobre a natureza. Uma cena é especialmente reveladora dessa fragilidade estrutural: alguém informa Agnes que a nova peça do marido é comentada por toda a cidade, mas o filme jamais constrói essa cidade, essa comunidade ou qualquer relação concreta daquele núcleo familiar com o entorno social. A reação inevitável é: que cidade? Do mesmo modo, quando Agnes insiste para que Will vá a Londres “se encontrar como homem”, essa mudança não produz impacto real no arco do personagem. Londres não transforma, não tensiona, não amplia; apenas reforça a ausência de Will como pai e marido.

Havia caminhos mais instigantes à disposição. Uma releitura crítica de Shakespeare, um olhar feminino sobre quem sempre esteve à margem de um grande autor, ou mesmo uma reflexão sobre apagamento e apropriação criativa. Nada disso se concretiza. O filme parece querer abraçar tudo, mas termina sem se aprofundar em nada. A montagem, marcada por saltos temporais arbitrários, dilui o peso de cenas que poderiam ser decisivas. O luto do casal é mal desenvolvido, assim como sua influência no processo criativo de Shakespeare permanece abstrata e pouco sentida.

Grande parte da carga emocional recai sobre a fotografia de Adolpho Veloso, o elemento mais consistente do filme. O uso da luz natural, da chama como fonte de iluminação e da textura da imagem cria um contraste claro, interiores noturnos e opressivos versus exteriores quentes e acolhedores, como se a natureza oferecesse um refúgio diante da melancolia. Em alguns momentos, a câmera circunda os personagens com uma cadência que remete ao cinema de Terrence Malick, influência assumida de Zhao, especialmente na construção do romance entre Will e Agnes.

A diferença é que, enquanto Malick aposta numa espontaneidade que provoca e desestabiliza, Zhao parece operar sob um cálculo constante. Hamnet quer emocionar o tempo todo e, justamente por isso, frequentemente escorrega para o melodrama. Cenas como o duplo parto de Agnes ou a morte do menino são alongadas à exaustão, enquanto outras passagens narrativas são apressadas, criando um ritmo irregular e desconfortável. O drama aqui parece planejado, não vivido.

Essa abordagem afeta diretamente o trabalho do elenco. Jessie Buckley entrega uma atuação marcada pelo excesso, através de gestos amplos, gritos estrondosos, olhares perdidos que oscilam entre ingenuidade e caricatura. Sua Agnes se aproxima mais de uma figura mística genérica, quase uma “bruxa da floresta”, do que de uma mulher atravessada por dor, afeto e sabedoria. Mesmo que essa estilização fosse intencional, falta intimidade. Paul Mescal, por outro lado, opta por um registro contido, construindo um homem à beira do colapso que encontra na arte um modo de continuar existindo. Seu choro final soa involuntário, honesto. Ainda assim, a montagem impede que ele se consolide como eixo emocional da narrativa.

Já os conflitos familiares surgem e desaparecem sem consequências. O protagonismo oscila de forma errática. Ora Will, ora Agnes, ora as próprias crianças parecem ocupar o centro do filme. Talvez Zhao tenha tentado traduzir a instabilidade da vida diante da maior das tragédias. Mas o drama não se sustenta quando é excessivamente calculado. Ele precisa emergir de dentro.

Hamlet nasceu do luto íntimo de Shakespeare. Em Hamnet, apesar da beleza visual e das boas intenções, essa dor nunca se encarna plenamente. Ao fim, entendemos mais uma vez o que havia dentro de Shakespeare, mas seguimos sem compreender, de fato, o que Chloé Zhao conseguiu colocar de si nessa obra.

Hamnet: A Vida Antes de Hamlet (Hamnet) – EUA e Reino Unido, 2025
Direção: Chloé Zhao
Roteiro: Chloé Zhao, Maggie O’Farrell (baseado em romance de Maggie O’Farrell)
Elenco: Jessie Buckley, Paul Mescal, Emily Watson, Jacobi Jupe, Joe Alwyn, David Wilmot, Bodhi Rae Breathnach, Olivia Lynes, Noah Jupe
Duração: 126 min.

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