Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Hannah e Suas Irmãs

Crítica | Hannah e Suas Irmãs

por Luiz Santiago
1,5K views

A premissa de Hannah e Suas Irmãs é extremamente simples: um homem apaixona-se por sua cunhada. Enquanto esse dilema se desenvolve, outras histórias da família são apresentadas e adicionadas ao enredo, formando um emaranhado consanguíneo e de agregados à família que torna todo o plot íntimo e caloroso. O título, emprestado de Rocco e Seus Irmãos e com nuances nucleares da peça As Três Irmãs, de Tchekhov, nos dá a tônica do longa, que mantém a estrutura familiar e a festividade de Ação de Graças como ponto de reunião e abertura ou fechamento de um novo ciclo de vida, assim como outra festividade, o Natal, serviu com o mesmo propósito para a inspiração conceitual de Allen na escrita do roteiro, o longa Fanny & Alexander, de Ingmar Bergman.

No meio dessa dança familiar, o espectador nota que cada uma das irmãs protagoniza o filme de maneira diferente, e isso se dá porque o ponto de vista do roteiro não é sempre o mesmo, às vezes adotando uma visão pessoal e cheia de reminiscências de um personagem; outras vezes assumindo uma disposição cronista com direito a intertítulos e tudo e, por fim, apresentando de forma distanciada (o ponto de vista do narrador oculto/diretor/espectador) as mudanças na vida das irmãs Hannah (Mia Farrow), Holly (Diane Wiest) e Lee (Barbara Hershey) em um espaço de dois anos.

O estabelecimento das personalidades, desejos e formas de ver a vida de cada uma delas nos é revelado quase por completo na primeira longa sequência do filme, no jantar de Ação de Graças. Há uma atmosfera de confraternização tão intensa que raramente é vista em filmes com um elenco tão afinado e tão grande (em relação ao espaço ocupado) e isso certamente teve alguns empurrões da realidade de produção da obra. As cenas que vemos no apartamento de Hannah foram filmadas no apartamento de Mia Farrow, ou seja, a atriz estava literalmente trabalhando em casa, alternando a sua rotina privada com a rotina de trabalho durante algumas semanas. Além disso, há no filme a presença de 4 dos filhos de Farrow na vida real (Daisy Previn, Moses Farrow, Soon-Yi Previn e Fletcher Farrow Previn), a mãe dela na vida real, Maureen O’Sullivan, que também interpreta sua mãe no filme; e um amigo de longa data de Farrow e Woody Allen, o ator Michael Caine. Isso sem contar que Allen já havia trabalhado com Dianne Wiest no ano anterior, em A Rosa Púrpura do Cairo. Ou seja, estava tudo basicamente entre família e amigos.

Por mais claustrofóbicas que sejam essas reuniões e todo o filme acabe seguindo essa linha de atenção maior aos espaços fechados — dramatúrgica e simbolicamente — o espectador não se vê amargurado por essa prisão. A sensação que o roteiro cria é de um grupo de personagens que tem quase tudo em mãos mas que raramente consegue agradecer, aceitar ou dar valor a essas coisas, com exceção de Hannah, a mais madura e resolvida das três irmãs. Ao mesmo tempo, as diferentes personalidades da tríade protagonista nos guiam por mundos em que prisões particulares são apenas a ponta do iceberg de todos os laços estabelecidos. Não se trata apenas de uma ciranda de amores não correspondidos ou de dúvidas e confusões sobre que rumo dar à própria vida. Temas tipicamente woodyanos como a perspectiva e o medo da morte, o sentido da vida, a importância ou não da arte, a prisão eterna do trabalho, a dúvida sobre a existência ou não de Deus, as inconstâncias das religiões, os desejos impossíveis de se realizar… tudo isso acaba aparecendo como motivo de ação dos personagens do filme e estará em pelo menos uma das crônicas mostradas, sendo a Mickey, personagem de Woody Allen, a menos forte de todas, pelo menos na primeira parte, porque a segunda é tão boa quanto todo o restante do filme.

Mas de novo entramos no caminho da relativização de conceitos, porque mesmo nos momentos de grande crise que assola a alguns personagens, há um toque poético de caráter diferente em cena. A comédia e o drama se entrelaçam de forma tão íntima e tão necessária (esta é a palavra) que a impressão de realismo nos toca a ponto de chegarmos à cena final emocionados e cúmplices das vidas que acabamos de ver mudando e amadurecendo na tela — ou pelo menos é isso o que parece à primeira vista. Pensamentos sobre como a bondade, a fraternidade, o amor incondicional, o sucesso profissional e a causalidade se misturam e transformam essas vidas tão reais quanto o poema de E.E. Cummings; quanto a ópera Manon Lescaut, de Puccini; quanto um Concerto de Bach ou canções como You Made Me Love You, I’ve Heard That Song Before e Bewitched, Bothered, and Bewildered. No sentido mais positivo da colocação, é como se víssemos vidas mimetizadas DE FATO no cinema, como se tivessem saído de versos tragicômicos diretamente para uma tragicomédia cheia de lirismo e com um ritmo milimetricamente imposto por uma editora que sabia o quanto deveria durar uma emoção e como ela deveria dar lugar a uma outra (e qual outra) logo em seguida. Não espanta que uma das 7 indicações ao Oscar que o filme recebeu foi a de Melhor Edição.

O fotógrafo Carlo Di Palma iniciava aqui uma parceria que duraria 11 anos ao lado de Woody Allen (até Desconstruindo Harry) e em oposição ao sombrio Gordon Willis, que estava indisponível naquela ocasião, trouxe cor, claridade e contrastes entre paletas frias e quentes para o filme, fazendo um trabalho esteticamente comparável às “estações do ano”, utilizando dessas marcações para delinear uma ou outra grande emoção desenvolvida no roteiro. Perceba como isso é muito forte nos dois blocos de outono e no bloco de verão, o terceiro mais belo de todos, perdendo apenas para as duas sequências internas de reunião da família na festa de Ação de Graças — a inspiração no trabalho de iluminação e movimentação de câmera de Sven Nykvist em Fanny & Alexander é evidente nos dois casos. O espectador é convidado aí a sentar-se à mesa e sentir-se em casa. E exatamente como começa, o filme termina, só que agora com a vantagem de tudo ali ter ganhando um valor muito maior. Nós, ao longo do filme, também nos tornamos um dos irmãos de Hannah.

Com excelentes interpretações do elenco principal (destaque para a tríade feminina), temática que funciona como um ímã que atrai todos os grandes núcleos dramáticos da filmografia de Woody Allen e um final feliz que não soa clichê ou condescendente (embora a intenção original do diretor tenha sido terminar o filme de modo pessimista, ideia mudada a pedido dos produtores) Hannah e Suas Irmãs é um dos grandes e melhores filmes de Woody Allen. Uma forma de olhar a família com um pouco de poesia, loucura e amor da qual jamais nos esqueceremos.

Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters) — EUA, 1986
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Barbara Hershey, Carrie Fisher, Michael Caine, Mia Farrow, Dianne Wiest, Maureen O’Sullivan, Lloyd Nolan, Max von Sydow, Lewis Black, Julia Louis-Dreyfus, Christian Clemenson, Julie Kavner, John Turturro
Duração: 103 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais