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Crítica | Hannibal – A Origem do Mal

por Leonardo Campos
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Teoria da sedução. Assim podemos explicar o interesse do público por Hannibal Lecter, personagem que deveria causar calafrios, mas para algumas pessoas, é puro charme, salvaguardas as devidas proporções de receptor numa relação com uma obra cinematográfica. A existência de Lecter e suas ações fogem dos nossos códigos de civilidade, por isso a chamamos de amoral, algo que ao mesmo tempo está dentro das dimensões do que consideramos errante, mas também expressa a excentricidade e a anarquia que a psicanalise freudiana estudou e afirmou que encontra-se reprimida na formação de nossas identidades, forjadas dentro de regras estabelecidas para a nossa convivência em sociedade. Por exercer tarefas acadêmicas diariamente, haja vista a minha posição docente nos últimos anos, “encontro” Hannibal Lecter como tema ou breve menções em publicações que o estudam por vieses múltiplos, da Psicologia Clínica ao campo da literatura, por vezes na área de Comunicação e Estética. Um desses estudos diz que Hannibal é o equivalente ao ogro contemporâneo, relação do personagem com os monstros de contos populares clássicos de horror, figuras que devoram as suas vítimas e as tem como troféu, parte integrante de sua constituição, algo ultrajante, não é mesmo?

Mas todo esse ultraje é atraente, combustível ideal para o surgimento de narrativas que utilizam das licenças artísticas para desenvolver as suas histórias mais mirabolantes. Esta não é, por sua vez, a situação do filme em questão. Lembro que na ocasião de lançamento, era profícua de minha cinefilia, mas ainda bastante preambular no exercício da crítica cinematográfica, opinei que Hannibal – A Origem do Mal era um desgaste por causa da falta de perspectiva para um personagem interpretado tão bem três vezes por Anthony Hopkins, em filmes que considero intensos dentro de suas peculiaridades. Essa, no entanto, era uma opinião de quem precisou aguardar mais de meia década para conferir as possibilidades desta figura ficcional no universo televisivo criado por Bryan Fuller, uma reviravolta na presença do Dr. Hannibal Lecter no cenário desgastado da cultura pop e seu fascínio por assassinos em série e investigação criminal. Aqui, por sua vez, o que temos é apenas um suspense genérico que se não tivesse a presença do personagem em questão, poderia ser qualquer slasher razoável lançado para preencher as lacunas de entretenimento de um final de semana.

Apagado, sem charme e com história desinteressante, o filme é resultado de seu ponto de partida, o livro homônimo e também desinteressante de Thomas Harris, escritor que também assina o roteiro da produção, sem a criatividade esperada para alguém que já expandiu Dr. Lecter em três ocasiões. Ao longo de seus extensos 121 minutos, o cineasta Peter Webber administra a trama que nos conta as origens do “canibal mais charmoso do cinema”. Agora interpretado por Gaspard Ulliel, ator que cumpre devidamente a sua missão, mas não pode ser responsabilizado pelo texto irregular, Hannibal – A Origem do Mal trouxe o personagem mais uma vez para o mainstream, num sotaque europeu carregado, mergulhado numa narrativa que tal como apontado, peca pela falta de estimulação. Há passagens inteiras semelhantes ao livro, dando vazão para o que as pessoas que não entendem nada de tradução intersemiótica chamem a produção de “fiel” ao romance. Aqui, Thomas Harris deveria ter traído o seu material literário. Contar o passado e exaurir mitologias não é uma especificidade da franquia analisada, mas ao passo que conhecemos as bases do personagem e a tese de vingança como mola propulsora para a postura antropofágica do psiquiatra manipulador, ficamos cada vez menos convencido das potencialidades do filme.

É uma história morna demais, amarrada e preocupada em iluminar pontos que estavam muito mais interessantes recalcados no imaginário cultural cinematográfico. Em suma, não pegou nada bem. Na produção, somos levados para a Lituânia e acompanhamos a família Lecter inserida no contexto da Segunda Grande Guerra Mundial. Militares russos e alemães se aproxima da propriedade luxuosa de Hannibal e faz os seus pais o carregarem, junto a Mischa (Helena Lia Tachovská), sua irmã caçula, para a casa de campo, tendo em vista esconder-se dos conflitos. Entre estouros, explosões e ameaças cada vez mais constantes, eles são encontrados pelos soldados de Hitler. As crianças conseguem sobreviver momentaneamente, mas os pais são ceifados sem piedade. Agora com Mischa, Lecter precisa tentar sobreviver, mas o inverno rigoroso e a ânsia de fome dos soldados não permitem vida longa para a pequena garota. Hannibal consegue sair ileso, mas sua irmã infelizmente não. E isso é um dos pontos de partida para pesadelos, insanidade, temores e uma juventude nada agradável, vivida sob tutela russa num reformatório, antes que o personagem consiga dar conta de seu plano de fuga e se mudar para Paris, instalando-se na casa de um tio, não mais presente, propriedade que agora abriga a esposa dele, Sra. Murasaki (Gong Li).

É óbvio que uma atração entre o jovem Hannibal e a sua “tia” vai dar um clima romântico ao filme que tem como foco, a vingança imaginativa deste jovem envolvido nas artes e com destaque na faculdade de medicina, local onde aprende a arte da anatomia humana. E é galgado em elementos trabalhos nos demais filmes que Hannibal – A Origem do Mal vai explicando o personagem, como se fosse uma daquelas aulas monótonas claramente sem inspiração pela falta de um planejamento melhor do docente, neste caso, Thomas Harris, o escritor dramaturgo que entrega um material muito abaixo do seu nível para se transformar em narrativa cinematográfica. Fosse o caso de mais um roteiro hollywoodiano dramaticamente preciso, mas estragado pelo diretor ou produtores, entenderíamos o mal-estar diante da trama pecaminosa. Mas, como já mencionado, o romance em si é um tédio, o que não nos restava muito a esperar se assinado pelo mesmo equivocado autor. Lançado em 2007, esse thriller nos faz acompanhar a vingança slasher deste ogro em processo formativo, a aniquilar um a um, os responsáveis pela morte traumática de sua irmã. Quando pequeno, o personagem é interpretado por Aaran Thomas, num bom desempenho.

Visualmente, devo ressaltar, não há muitos pontos para reclamar de Hannibal – A Origem do Mal. Na direção de fotografia, Ben Davis entrega boas imagens para o cineasta, acompanhadas pela condução sonora assinada por Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi, setor que divide com Danny Elfman, responsável pela música de Dragão Vermelho, o título de composição mais morna e inexpressiva para um exemplar da franquia. Para quem vem dos ótimos trabalhos de Howard Shore e Hans Zimmer em O Silêncio dos Inocentes e Hannibal, respectivamente, a audição da trilha desta “sequência prévia” e muito aquém do próprio personagem, um amante da música erudita. O design de produção de Allan Starski vai do tom acinzentado ao musgo, escolha que confere ao filme uma atmosfera retrospectiva, eficiente para as demandas dramáticas no desenvolvimento da narrativa, setor que tem nos figurinos de Anna B. Sheppard um trabalho também “adequado”. No que tange ao supervisor de efeitos especiais e maquiagem, assumido por Waldo Mason, temos aqui pouca coisa para desenvolver, haja vista a redução da violência de determinadas passagens, comparadas aos demais filmes deste universo estiloso, mas que não economizou em mortes apavorantes.

Ademais, o resgate de Hannibal Lecter e de outros psicopatas é a comprovação cabal do fascínio que estes personagens estabelecem na cultura estadunidense, expandida globalmente e semente para germinação em outros circuitos de produção. Charmoso, o canibal que deveria causar horror ganha o status de herói e estampa camisas, quadros, menções acadêmicas e atualmente, na cultura das redes sociais, espaço que os transforma em memes, gifs, etc. Com seu gosto por música e artes plásticas eruditas, amante inveterado da literatura e da psicanálise, o Dr. Lecter é um ponto curioso de fascinação, haja vista a sua mescla entre consumo de vinhos e gastronomia sofisticada, muitas vezes acompanhada de publicações do francês Alexandre Dumas, enquanto alimenta-se de humanos que geralmente se estabelecem em seu caminho como obstáculo, peça que precisa ser devorada no xadrez da vida cotidiana deste personagem esférico que merecia uma origem melhor, ou talvez, devesse mesmo gravitar numa dimensão misteriosa, como esteve antes de ser incomodado por seu próprio criador, Thomas Harris, certeiro nos três primeiros romances, mas sem foco no desenvolvimento da última aparição literária e cinematográfica de Lecter.

Hannibal – A Origem do Mal (Hannibal Rising, EUA, França, Itália, Reino Unido e República Tcheca  – 2007)
Direção: Peter Webber
Roteiro: Thomas Harris
Elenco: Gaspard Ulliel, Aaran Thomas, Gong Li, Helena-Lia Tachovská, Rhys Ifans, Dominic West, Richard Leaf, Michelle Wade
Duração: 121 minutos

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