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Crítica | Hannibal – A Série Completa

por Leonardo Campos
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Ao longo de três temporadas, exibidas entre 2013 e 2015, a série Hannibal, criada por Bryan Fuller, demonstrou possibilidades ainda não exploradas neste universo, justamente quando achávamos que o material literário de Thomas Harris já havia se esgotado por completo em seu potencial de tradução para a semiose audiovisual. Os equívocos de A Origem do Mal embaçaram qualquer interesse nosso em continuar contemplando os jogos psicológicos do psicopata mais ardiloso e enigmático da literatura e do cinema, impressão que se modifica já no primeiro episódio da série, um sofisticado exercício da linguagem audiovisual, numa pretensiosa e eficiente construção narrativa que se aproxima do que concebemos como autoral, mais distante das padronizações costumeiras das exaustivas séries investigativas lançadas aos montes anualmente. Em seu projeto, Bryan Fuller pegou elementos periféricos de Dragão Vermelho, tal como a sensibilidade de Will Graham para analisar os crimes, algo quase sobrenatural, além de detalhes homoeróticos das beiradas dos demais livros da série, num resultado bastante polêmico e muito satisfatório.

Nos 39 episódios distribuídos em suas três temporadas, o dramaturgo Steve Lightfoot assina 22 unidades, todas supervisionadas por Fuller, também colaborador dos textos exibidos pela NBC na grade de programação noturna. Para o projeto dar certo, os realizadores tinham em mente a necessidade de um bom elenco para a condução das histórias complexas, repletas de simbolismos e geralmente finalizadas com ganchos abruptos típicos de quem domina o uso adequado do plot twist sem aleatoriedade, estratégias narrativas que permitiram a Hannibal se desenvolver sem cair nas obviedades do modelo procedural com um caso criminal por episódios, geralmente analisado, investigado e resolvido para na unidade dramática seguinte, outro assassinato se desenvolver para a resolução. Aparentemente, as coisas serão conduzidas assim, mas ao passo que os episódios avançam, outros recursos são inseridos para dinamizar a narrativa com olhar além do clichê. E mais: o elenco, em especial, a dupla principal, é um primor. Mads Mikkelsen traz uma versão fascinante de Hannibal Lecter, assim como Hugh Dancy entrega um esférico Will Graham.

Emotivo, enigmático e com alta sensibilidade, Will Graham é um agente do FBI tirado da sala de aula para adentrar numa investigação de crimes hediondo, movimentação policial coordenada por Jack Crawford (Laurence Fishburne). No primeiro ano, Graham e Lecter estão bastante próximos, envolvidos na resolução dos crimes, mergulhados numa atmosfera bastante sensual, complementadas por diálogos ambíguos que deixam um clima de erotismo a gravitar em torno de suas ações. Desde o preâmbulo da série, os realizadores investiram pesado na direção de fotografia e no design de produção para permitir que os duelos e as alegorias fossem muito além da encenação do texto dramático. James Hawkinson, dominante no setor de gerenciamento da captação de imagens entrega planos esquematizados dentro de uma base de cálculo milimétrica, cuidadosa em seus movimentos e preocupado sempre com a melhor iluminação possível dos cenários e adereços coordenados pelo design de Karim Hussain e Michael Marshal, peculiares na distribuição de cores em contraste e exposição de obras de arte que revelam particularidades dos perfis sociais e psicológicos de seus personagens.

Interessante observar as barreiras físicas que coadunam com os traços simbólicos da dupla protagonista quando estão em seus duelos psicológicos. Há sempre uma mesa, objeto decorativo, estante, escada, dentre outros elementos que simbolizam, nos meandros do espaço físico, o jogo mental entre Will Graham e Hannibal Lecter, inicialmente formulado com o primeiro a colocar entraves para o segundo, personalidade dominante que deseja se apossar do agente para os desdobramentos da ação mais adiante. Nesta primeira temporada, Graham passa bastante tempo na resolução dos crimes, Lecter a dominar o que pode ao seu redor e os demais personagens são apresentados, alguns mais importantes e centrais e outros menos expressivos, mas ainda assim importantes para o desenvolvimento de situações que fazem a história avançar. Fôlego, por sinal, é o que define os dois primeiros anos, turbinados por casos complexos e sofisticação estética bastante excitante para quem valoriza a forma em paralelo ao conteúdo. A propósito, Hannibal é um espetáculo visual acompanhado pela também eficiente condução musical, assinada por Brian Reitzell durante as três temporadas, trabalho merecidamente ovacionado pela crítica especializada e um diferencial na composição sonora para televisão, de textura firme e atmosférica.

Ainda em seu primeiro ano, a série levanta questionamentos sobre as propensões de Will Graham para o mundo do crime, inclinação manipulada pelo talento de Hannibal Lecter em transformar seres humanos em peças de seu tabuleiro social, movidos conforme os seus interesses. Como já mencionado, há muitos elementos de Dragão Vermelho, a base para o desenvolvimento da série. Alguns traços de Hannibal – A Origem do Mal também são brevemente mencionados na produção que infelizmente não conseguiu os direitos autorais para trazer Clarice Starling. É como se Bryan Fuller tivesse arquitetado um extenso mapa mental de todos os principais pontos do universo de Hannibal Lecter na literatura e no cinema e os distribuídos durante os 39 episódios, acrescidos de elementos novos, principalmente na seara do design e nas elucubrações artísticas de assassinatos elaborados como se fossem apresentações em instalações artísticas de museus, sempre a nos pedir a suspensão da descrença e o envolvimento na atmosfera macabra fantástica, concebida sem amarras realistas. Em suma, é o espetáculo da morte e da violência associados ao que há de melhor na pintura, música, arquitetura e, para não sair do esquema de Lecter, da gastronomia.

Quando a segunda temporada foi lançada, o texto já tinha avançado tanto que ficávamos em dúvida se ainda haveria espaço para mais emoções, afinal, como seria possível depois da montanha-russa de emoções do primeiro ano? A resposta, caro leitor, é assertiva. Hannibal consegue avançar ainda mais e mergulhar em zonas abissais da mente humana, agora com o agente Will Graham preso inocente, responsabilizado pelos crimes de Hannibal Lecter. Ninguém suspeita do psiquiatra canibal e de dentro da prisão, Graham precisa comprovar a sua inocência. Ao tomar o lugar do agente no FBI, Lecter consegue ter acesso às cenas dos crimes, o que lhe permite aumentar ainda mais a expansão de seus domínios criminais. As desconfianças surgem diante de Beverly Katz (Hettienne Park), agente que saca algo de estranho na postura do canibal que logo esboça um planejamento estratégico para eliminá-la do jogo. A questão é se ele irá conseguir tal feito. Nos destaques, a temporada apresenta um massacre em seu desfecho e muitas máscaras deslizam de alguns rostos, dando ao programa a complexa missão de elaborar um terceiro ano que ainda funcione, afinal, o que é possível contar depois de tantas revelações e arcos resolvidos?

É quando adentramos na polêmica e confusa terceira temporada, desfecho que desagradou muita gente, inclusive quem vos escreve. Hannibal agora está no continente europeu, foragido, acompanhado da Dra. Bedelia Du Maurier (Gillian Anderson), sua terapeuta nos anos anteriores. Ela é talvez a única pessoa que testemunha o compartilhamento de algumas emoções do canibal, mas não consegue penetrar nos confins da mente perturbada deste “ogro contemporâneo”. A sua relação com Lecter aproxima-se da síndrome de Estocolmo ao longo da temporada e a cena em que se alimenta da própria carne da perna é algo que ainda hoje não consigo desenvolver uma opinião fechada, isto é, nem amar, tampouco odiar. Talvez esse seja um dos grandes trunfos de Hannibal. Ainda mais próximo de algumas situações do romance Dragão Vermelho, o ano final da série também entrega o homoerótico e alegórico desfecho que em meu ponto de vista, é uma estratégia de encerramento que se aproxima do que Thomas Harris fez ao amarrar as pontas do romance Hannibal, de 1999, com aquelas questões em torno de Clarice Starling: ela cede o seu seio para o canibal, foge com ele para a Argentina e ainda é pensada como a reencarnação de Mischa, a irmã de Lecter que saberemos na sequência prévia, foi canibalizada na Segunda Guerra.

Há várias possibilidades de interpretação para o final desta série e esta é a minha contribuição analítica. Em sua terceira temporada, os realizadores parecem ter separado todo o material que envolve sensibilidades espirituais, alegorias complexas e as zonas ainda mais profundas da mente e empregado tudo que talvez antes tivessem extraído para fazer a série funcionar de maneira mais dinâmica. Trajados pelos figurinos assinados por Chris Hardgon desde o preâmbulo, os personagens de Hannibal são exuberantes, peças de um sofisticado jogo de alta costura, não apenas para tornar a série um programa visualmente luxuoso, mas para organizar cada um dentro de suas necessidades dramáticas e perfis físicos, sociais e psicológicos. Mais artísticas que dramática, a temporada final é também um exuberante espetáculo de imagens que mescla arte e música erudita, ainda mais rica na abordagem arquitetônica, haja vista a passagem de personagens pelo que chamamos de Velho Mundo. Diante desta profusão estética, o texto dá vazão aos elementos fantásticos da prosa de Thomas Harris e a série perde na continuidade. Tem-se a impressão dissonante do desfecho em relação aos dois anos anteriores. Parece outro “material”.

Acompanhada pelos efeitos visuais em suas 39 unidades, Hannibal foi supervisionada neste setor por Robert Crowter, responsável pela morbidez das artísticas cenas dos assassinatos atribuídos ao Dr. Lecter, bem como das aparições presentes nas passagens de Will Graham envolvido por sua “sensibilidade”. São elementos que compõem a dimensão fantástica da série, parte do jogo narrativo voltada aos meandros da mente, muito bem trabalhados por sinal, sem momento algum de gratuidade. Aparecem ainda na terceira temporada, Mason Verger (Jill Anderson), Chyoh (Tao Okamoto) e Francis Dolarhyde (Richard Armitage). Com isso, temos Verger a desenvolver o seu plano de caçada contra Lecter e Dolarhyde, a Fada do Dente, transformando-se no Grande Dragão Vermelho. Ademais, Hannibal não foi sucesso de público, mas apresentou episódios de carga simbólica complexa, algo que sabemos, não atinge as grandes massas. Crimes hediondos na televisão aberta pedem um público mais preparado e talvez por isso os rumores de uma quarta temporada, focada no pansexualismo, ainda não ganhou e provavelmente não ganhará sinal verde para produção. Por fim, é melhor que Will Graham e Hannibal Lecter permaneçam onde estão, ainda a despencar do abismo onírico sem fim que delimitou a existência da dupla no final da série.

Hannibal (Hannibal, EUA, 2013-2015)
Criação: Bryan Fuller
Direção: David Slade, Michael Rymer, Peter Medak, Guillermo Navarro, James Foley, Tim Hunter, John Dahl
Roteiro: Bryan Fuller, Steve Lightfoot, Jeff Vlaming, Angelina Burnett, Nick Antosca, Tom de Ville, Don Macini, Helen Shang, Angela Lamanna.
Elenco: Mads Mikkelsen, Hugh Dancy, Laurence Fishburne, Carolline Dhavernas, Gillian Anderson, Joe Anderson, Richard Armitage, Rutina Wesley, Tao Okamoto
Duração: 43 min (cada episódio)/39 episódios no total.

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