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Crítica | Harry Potter e a Criança Amaldiçoada – Parte 1

por Luiz Santiago
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estrelas 5,0

ESTA CRÍTICA NÃO POSSUI SPOILERS!

#KeepTheSecrets

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (2016) é uma peça de teatro da West End, a “Broadway Britânica”, escrita por Jack Thorne, com base em uma história desenvolvida por ele, John Tiffany e  J. K. Rowling. A peça é dividida duas partes, com dois grandes atos cada uma. A presente crítica considera os eventos da Parte 1 (Atos 1 e 2). Como avisado em destaque, esta crítica não possui nenhum tipo de spoiler. Todas as informações citadas na análise já foram dadas oficialmente pela sinopse, teasers, entrevistas ou release da obra original, contextualizando, em parte, o que aconteceu com Harry e seus amigos Rony e Hermione 19 anos depois dos eventos de Harry Potter e as Relíquias da Morte, mas, como a presente saga se passa em um período maior que um ano, esta indicação de “19 anos depois” aumenta ao longo dos Atos.

Antes de mais nada, vai um aviso: este oitavo livro da série não é um romance, é uma peça de teatro, portanto, para os desacostumados ou para os que nunca leram uma peça, imaginem que vocês estarão com um roteiro em mãos. E não, não há nenhuma indicação de que o texto será novelizado (transformado em romance), e nem deveria, a meu ver. Outro aviso importante é que a obra está sendo lançada com a tag de “edição de ensaio”, ou seja, trata-se do roteiro original da peça que, depois da turnê, poderá sofrer alterações vinda dos improvisos pontuais dos atores ou mesmo uma ou outra incursão/retirada de elementos que os autores acharem necessários. É possível que daqui a alguns anos tenhamos uma “edição definitiva”, contendo todas essas possíveis mudanças. Porém, conhecendo o ciúme de J. K. Rowling para com o seu universo, não deverão ser muitas e nem mudarão nada de realmente importante desta versão original.

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Com os atores da peça, as fotos promocionais das famílias protagonistas de HP8: Draco e Escórpio Malfoy / Harry, Alvo Severo e Gina Potter / Rony, Hermione e Rose Granger-Weasley.

O maior triunfo dos autores em A Criança Amaldiçoada é a manutenção da essência que conhecemos dos sete livros iniciais da série. Não é como se estivéssemos entrando em um outro gênero literário e, por isso, em um Universo irreconhecível, apenas “levemente inspirado no original”. Não. Logo na Cena 1 do primeiro Ato, somos jogados em um mar de nostalgia que se resolve em diálogos rápidos e apresentação inteligente dos principais personagens da obra, ao menos para esta Primeira Parte. Estão lá o contato do velho com o novo, o espanto, um delicioso medo inocente e algumas e ações que quase rememoram, em texto, as cenas de apresentação, encontros e despedidas dirigidas por Chris Columbus em A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta.

Considerando o título e sabendo pela sinopse oficial que a peça aborda uma grande dificuldade de relacionamento entre Harry — agora um funcionário do Ministério da Magia — e seu filho do meio, Alvo Severo Potter (seu irmão mais velho chama-se Tiago Sirius e a mais nova, Lílian Luna), o leitor fica espantado pela entrada esperançosa e alegre do primeiro Ato. Em pouco tempo, alguns personagens serão colocados em situações onde muito de sua personalidade virá à tona (não necessariamente uma queda de máscaras, mas uma reação natural a uma certa “crise”) e é a partir desse momento que a narrativa passa da confraternização para a tensão.

Aqui não existem rompantes chocantes e nem apelações jogadas a esmo, apenas para chocar o leitor e fazer algo polêmico com este ou aquele personagem conhecido. Todas as ações são organicamente trabalhadas e, salvo uma invasão que vai deixar o leitor com o coração batendo e suando frio durante toda a Cena 19 — nada, porém, que atrapalhe ou diminua o valor do produto final –, tudo é muito bem explicado e não há nenhum caminho extremo necessário para compreender e aceitar os arranjos da trama.

Muito mais do que na série original, o conflito de geração ganha destaque e extrema problematização aqui, assim como uma maior liberdade nas indicações afetivas/fraternas/amorosas, inclusive com um tratamento dado ao status de “melhores amigos” que ganha contornos tão profundos que chegam a impressionar o leitor dada a rapidez, coesão e objetividade com que são construídos, chegando a um patamar que nos cativa facilmente e mostra um nível de conflito entre pessoas que se gostam que só tivemos pela primeira vez neste Universo, do meio de O Cálice de Fogo para o início de A Ordem da Fênix!

Quando chegamos ao segundo Ato, temos muito clara a ideia de que “as aparências enganam” e andamos às voltas com questões ligadas à falta ou excesso dos pais na criação dos filhos; à ação impulsiva de alguns adolescentes que abraçam determinadas causas como se fossem a última coisa válida no mundo; e o quão injustas e erradas podem ser a “interpretação” de coisas que servem para julgar, isolar ou punir alguém sem que realmente haja culpa. Todo o segundo Ato da peça é estruturado nesse tom existencialista e humanista aplicados, caráter do texto que fica ainda melhor quando as principais ações dos personagens nos trazem lembranças de O Prisioneiro de Azkaban, com mistérios, intricadas realidades e comemorações que deixarão a todos com olhos do tamanho de um pires…

Longe de ser uma enganação ou um caça níquel bobo, Harry Potter e a Criança Amaldiçoada – Parte 1 retoma com imenso respeito e acuidade o Universo do Menino Que Sobreviveu e faz dos mais diversos tipos de família (uh, isso deverá irritar muito aos que gostam de ver essa base social cristalizada em um único modelo) como elemento de crise e ao mesmo tempo, redenção par quem deseja.

A trama é madura e plenamente coerente com inclusões, abordagens e tratamentos de personagens em nossos tempos — vide a mudança de etnia da atriz que interpreta Hermione na peça (canonicamente, J. K. Rowling não definiu etnia para ela). Desde o lançamento de HP7 em 2007, muita coisa mudou no mundo e J. K. Rowling sempre teve interesse em trazer variações de comportamentos humanos para suas obras, coisa que vemos bem colocadas nesta primeira parte, desde uma possível relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo (não confirmada, mas deixada, com clareza e delicadeza, para nossa interpretação) até discussões que podem fazer paralelos bíblicos com o conceito de maldição à la Antigo Testamento; visão problematizada de lealdade, oposição entre teoria e prática e vontade de construir algo importante em torno de si, mesmo que vá contra a opinião de todos. O mundo de Harry Potter está de volta. E com ele, mais um turbilhão de emoções, nostalgia e um forte sentimento de cumplicidade. Deixar de ler não é uma opção para potterheads.

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada – Parte 1 (Harry Potter and the Cursed Child) — Reino Unido, 31 de Julho de 2016
Autores: Jack Thorne (baseado em uma história de Jack Thorne, John Tiffany e  J. K. Rowling).
Editora original: Little, Brown and Company
Editoria no Brasil: Rocco (31 de outubro de 2016)
343 páginas (volume completo)

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