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Crítica | Helstrom – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Helstrom marca, para todo os efeitos, o fim de uma era. Com o encerramento formal da Marvel Television e a unificação das propriedades da editora debaixo do Marvel Studios, com uma nova batelada de séries diretamente conectada com o Universo Cinematográfico Marvel, o último resquício de variedade criativa se foi e o projeto de um mini-universo da Hulu à la Marvel-Netflix, que já havia até ganhado um nome, Adventure into Fear (título de uma HQ de horror da editora lançada em 1970), e que contaria também com uma agora cancelada série solo do Motoqueiro Fantasma, não mais existe. Não tenho certeza, mas creio que Helstrom só chegou mesmo a ser produzida por questões contratuais e porque alguém deve ter feito a conta e chegou à conclusão que pagar multas rescisórias e tudo mais seria mais caro do que efetivamente lançar a 1ª temporada que, duvido, ganhará uma seguinte.

Seja como for, é uma pena, pois dificilmente veremos, a partir de agora, os heróis mais sombrios da Marvel Comics ganharem versões realmente sombrias na televisão. Daimon Hellstrom (sim, originalmente com dois Ls), para quem por acaso não conhece, é um “herói” criado por Roy Thomas e Gary Friedrich em 1973 para surfar no sucesso dos personagens demoníacos da editora, mais conhecido em seu início de carreira como O Filho de Satã (ele era literalmente isso) e andava por aí sem camisa, com um pentagrama tatuado no peito, calças, botas e capa vermelhas e douradas, um tridente e, claro, penteado que dava a impressão de que ele tinha chifres. Seu sucesso foi efêmero e ele foi repaginado de maneira mais sombria e menos espalhafatosa e usado de maneira esparsa, juntamente com sua irmã Satana Hellstrom, aqui e ali ao longo das décadas, criando uma modesta, mas interessante mitologia própria.

A temporada inaugural da série bebe bastante dessa mitologia usando personagens, premissas e situações extraídas cirurgicamente dos quadrinhos, mas sem que o espectador que jamais ouviu falar deles sinta sua falta. Até em termos de Universo Cinematográfico Marvel, as referências são quase completamente inexistentes, já que, não bastasse o logo da Marvel sequer aparece na série, em uma clara indicação de que a Disney não quer conectar suas propriedades mais juvenis com histórias de possessões demoníacas, apenas a Roxxon Corporation dá as caras silenciosamente ao fundo de algumas cenas, mais nada. No entanto, isso é bom, pois retira da série desenvolvida por Paul Zbyszewski – demitido durante a produção em razão do fim da Marvel Television, mas que ficou até o final como consultor, ganhando todos os créditos devidos – qualquer necessidade de se amoldar a algum tipo de padrão ou fórmula. Para todos os efeitos, também, ela é autocontida em seu micro-universo, não precisando recorrer a elementos externos para funcionar.

Além disso, Zbyszewski inteligentemente faz algo muito comum nos quadrinhos ao desenvolver uma narrativa que nasce, se desenvolve e chega ao fim (ou um fim, já que o final é inafastavelmente aberto) dentro do seio familiar dos Helstrom. Em outras palavras, tudo orbita ao redor da família que nomina a série, dando a boa impressão de um mini-recorte realmente preso às suas próprias regras. Nesse contexto, tudo gira no entorno de Daimon Helstrom (Tom Austen), professor de ética com poderes variados que é um exorcista nas horas vagas. Ele foi criado desde muito jovem pela Doutora Louise Hastings (June Carryl), diretora do hospital psiquiátrico Saint Teresa Center, em Portland, onde Victoria (Elizabeth Marvel), mãe biológica de Daimon, está internada há 20 anos, possuída por um demônio que o protagonista não consegue exorcizar. Sua irmã, SatAna (Sydney Lemmon), separada dele por um pai-demônio serial killer que a forçou a viver com ele enquanto viajava por aí assassinando suas vítimas, vive como uma sofisticada marchand de relíquias históricas em São Francisco, nutrindo o hábito de matar pervertidos com a ajuda de seu sócio e irmão de criação Chris Yen (Alain Uy) e seus poderes semelhantes ao do irmão, sendo acompanhada, de longe, por Henry (Robert Wisdom), um misterioso guardião com conexões também com Louise e com uma organização milenar secreta.

As coisas começam a andar já a partir dos dois primeiros episódios, quando os irmãos, ao investigarem casos separadamente, convergem para uma mesma situação que, claro, envolve o retorno do pai deles, fazendo-os reunir-se pela primeira vez em anos. Além disso, Daimon, a pedido de Louise, ganha como parceira a noviça Gabriella Rossetti (Ariana Guerra), uma conexão com o Vaticano treinada em exorcismos tradicionais. Como a narrativa é toda endógena, como disse, as tramas correm internamente à família estendida dos Helstrom, permanecendo nesse grupo de pessoas quase que integralmente, o que empresta uma sensação boa de envelopamento, sem digressões para sub-tramas irrelevantes ou perdidas.

O clima é pesado e sombrio. Não só Daimon e Ana tem seus próprios demônios pessoais de décadas – ele se sentindo culpado pela perda da irmã e pela internação da mãe e ela se sentindo suja pelo convívio abusivo com o pai -, como tudo ao redor deles é decadente, escuro, sujo. Não é, porém, algo que não tenhamos visto antes, lógico. Séries de horror como The Exorcist e Outcast, somente para citar duas razoavelmente recentes, já trafegaram por caminhos semelhantes e o que Helstrom tem a oferecer de diferente é a relação familiar e o fato de os protagonistas serem literalmente híbridos de humana com demônio com poderes especiais. É uma combinação que surpreendentemente funciona e que resulta em uma temporada interessante.

Tom Austen e Sydney Lemmon atuam de maneira fria e distante e isso torna a tarefa de conexão com seus personagens bastante difícil. Mas essa é natureza de Daimon e Ana, duas pessoas sofridas que têm poderes conectados com o mal encarnado. Lemmon consegue quebrar essa barreira mais rapidamente, com uma performance que combina elegância com sarcasmo e dor, além de sua simpática conexão com o personagem de Alain Uy. Austen, por seu turno, é mais reservado e afastado e, mesmo fazendo dupla com a mais falante e extrovertida Ariana Guerra, demora um tempo considerável para ele ser humanizado. Por outro lado, June Carryl constrói uma personagem empática que ajuda a derreter o gelo dos protagonistas, algo que é amplificado pelo grande destaque da temporada: a atuação de Elizabeth Marvel como a possuída Victoria, que trafega muito bem entre mãe amorosa e confusa e uma demônia particularmente sinistra  e assustadora.

Mantendo constantemente uma atmosfera sombria e lidando com temas pouco característicos de quadrinhos mainstream, Helstrom é o proverbial filho único de mãe solteira, com o mais próximo desse viés demoníaco tendo sido a participação do Motoqueiro Fantasma de Gabriel Luna em Agents of S.H.I.E.L.D., encerrada em 2020 também como parte do pacote chamado “fim da Marvel Television”. A série pode não ser a coisa mais original do mundo e nem explodir cabeças com seu desenvolvimento narrativo, mas ela representava a oferta de algo diferente que contribuía para a abordagem de personagens de toda sorte da editora que dificilmente ganhariam o tratamento cinematográfico. É uma pena saber que dificilmente haverá futuro para a série, mas essa era da Marvel na TV, no final das contas, deixará saudades.

Helstrom – 1ª Temporada (EUA – 16 de outubro de 2020)
Desenvolvimento e showrunner: Paul Zbyszewski (baseado em criações de Roy Thomas, John Romita, Gary Friedrich, Herb Trimpe)
Direção: Daina Reid, Anders Engström, Michael Offer, Amanda Row, Jovanka Vuckovic, Sanford Bookstaver, Bill Roe, Cherie Nowlan, Kevin Tancharoen, Jim O’Hanlon
Roteiro: Paul Zbyszewski, Blair Butler, Marcus Dalzine, Sheila Wilson, Ian Sobel, Matt Morgan, Amanda Segel, Mark Leitner, Maggie Bandur
Elenco: Tom Austen, Nolan Hupp, Sydney Lemmon, Erica Tremblay, Elizabeth Marvel, Robert Wisdom, Ariana Guerra, June Carryl, Alain Uy, Daniel Cudmore, Deborah Van Valkenburgh, David Meunier, Trevor Roberts, Hamza Fouad
Duração:  500 min. (10 episódios)

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