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Crítica | Heróis Fora de Órbita (Galaxy Quest)

por Ritter Fan
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Não se deixem enganar pelo título bobalhão em português. Galaxy Quest é, de fato, uma comédia, mas, muito acima disso, a produção é, talvez, a mais carinhosa e engenhosa homenagem aos Trekkers e, diria, aos fãs em geral, o chamado fandom. O filme merece lugar cativo no coração de todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, hoje ou em algum momento da vida, cultivam ou cultivaram com carinho a paixão por uma série de TV, uma coleção de livros, uma franquia cinematográfica ou uma combinação de todas elas. É um filme que fala profundamente com todos os que se enquadram como fã de qualquer coisa em qualquer nível, sem esquecer de também funcionar como um choque de realidade e uma sátira ferina, mas adocicada a todo os fantásticos mundos em que volta e meia mergulhamos e saímos apenas com muita dificuldade.

Falar de Galaxy Quest é, claro, falar de Star Trek. Mas ainda que o primeiro possa ser facilmente classificado como uma paródia do segundo, tal catalogação seria reducionista e o conhecimento prévio do segundo, apesar de preferível, não é essencial para a apreciação da obra de Dean Parisot. O roteiro de David Howard e Robert Gordon, que eram e continuam sendo substancialmente dois ilustres desconhecidos em Hollywood, ainda que o segundo tenha escrito também o roteiro de Homens de Preto II e Desventuras em Série, é sim fortemente galgado nos pilares que sustentam a famosa e cinquentenária criação de Gene Roddenberry, mas o trabalho deles funciona para muito além dos confinamentos de uma franquia específica e pode ser visto e interpretado como uma alegoria para outras magníficas criações que estão profundamente enraizadas na cultura pop e que são objeto de adoração como Doctor Who, Star Wars, O Senhor dos Anéis, Harry Potter, super-heróis Marvel e DC e o que mais pudermos imaginar. Assistir o filme sendo um fã é como receber um gostoso e caloroso abraço de 102 minutos e isso em uma época – não tão distante assim – em que ser fã devotado de alguma coisa não era algo assim tão abertamente assumido pelos fãs e aceito pelos não fãs.

A inteligência do roteiro está no uso da metalinguagem para trabalhar todo o conceito do filme, transformando-o em algo que parte de uma abordagem semi-documental para ficção científica pura em questão de minutos, mas sempre de maneira muito próxima ao espectador e, vou repetir, ao fã em geral. Afinal, não há nada mais meta do que o filme abrir em uma convenção anual dedicada a Galaxy Quest, uma série de TV igual em cada minúcia, inclusive no título, a Star Trek, que não é mais produzida há 18 anos. Mas os fãs continuam tão ou mais ardorosos que antes, passando para seus filhos os mesmo gostos. O elenco, por sua vez, que muito claramente nunca mais teve alguma participação em série ou longa metragem de monta, vive de fazer aparições pagas nessa e em outras convenções, alimentando a adoração dos fãs em um ciclo vicioso muitas vezes pouco sadio.

Essa é a introdução semi-documental da fita, que nos apresenta muito rapidamente aos arquétipos da ficção científica: o comandante canastrão, a mulher boazuda sem muita função, o alienígena sisudo, o piloto histérico e o engenheiro completamente aéreo. Suas contrapartidas reais, porém, não aguentam mais repetir os mesmo papeis várias vezes por ano. Todos com exceção de Jason Nesbith, que vive o comandante Peter Quincy Taggart (os três nomes, claro, ecoam o de James Tiberius Kirk, o ilustre e mais famoso capitão da Enterprise), já que ele, a grande estrela, parece ganhar energia com essa ilusão de manutenção desse seu passado glorioso e com os aplausos dos fãs fantasiados que só querem seu autógrafo e tirar dúvidas técnicas sobre a nave sob seu comando na série (impossível não lembrar do famoso get a life que William Shatner soltou em sua esquete quando foi mestre de cerimônias de uma edição do Saturday Night Life de 1986 e cujo ultraje dos fãs o levou a escrever o livro Get a Life, uma carta de amor a Star Trek e seus fãs).

Mas o que parece um tapa na cara dos fãs – a carga no começo é melancólica, de fim de carreira e fortemente realista – logo sofre uma reviravolta, com Nesbith sendo assediado pelo que parece ser um grupo de fãs fazendo cosplay de alienígenas. A única diferença é que eles são mesmo E.T.s e que, na linha de Os Sete Samurais (e todas as cópias que se seguiram ao clássico de Akira Kurosawa), precisam da ajuda da valente equipe do comandante Taggart – que eles acham que é de verdade e não apenas um programa de televisão, como acontece em Três Amigos! – para lidar com um inimigo mortal. Não demora e a “tripulação”, completamente estupefata e com um extra da antiga série (e apresentador na convenção) representando os famosos “camisas vermelhas” (personagens sem nome que só existem para morrer nos episódios), tem que lidar com uma bem verdadeira guerra intergalática do outro lado de um buraco negro.

Navegando por todas as bobagens e ilogicidades que só os gêneros da ficção científica e fantasia podem trazer (a sequência do “labirinto de obstáculos” dentro da nave é antológica), o trabalho de Howard e Gordon realmente se destaca, funcionando como comédia, sátira e também paródia com partes de drama que podem marejar alguns globos oculares mais sensíveis. E a direção de Dean Parisot é inteligente como o roteiro ao emular o look and feel de séries de TV, algo que sua bagagem primordialmente como diretor dessa mídia certamente o ajudou. Afinal, ele desavergonhadamente utiliza-se de tomadas externas para localizar a ação (os establishing shots) da mesma forma que séries episódicas as utilizam, além da câmera parada em planos americanos ou close-ups dos atores para amplificar a sensação de um “teatro filmado”, algo muito comum notadamente na série original de Star Trek. No entanto, ele não exagera e deixa a linguagem cinematográfica sobressair-se assim que a ação principal já está em movimento, com todos a bordo da nave espacial Protector II, que conta com um design que, por dentro e por fora, lógico, lembra em diversos aspectos o da Enterprise clássica.

Mas o grande trunfo da fita é mesmo deixar no colo de um fã viciado em Galaxy Quest a salvação remota da trupe inadvertidamente enviada para o espaço. Vivido por Justin Long, esse fã e seus amigos com grau máximo de nerdice e que são perfeita e criticamente inseridos bem cedo na narrativa fecham toda a lógica circular da projeção que literalmente se encerra como acaba, em uma convenção de fãs. Um tributo inesquecível ao fandom.

Já que falei de Long, não poderia jamais furtar-me de abordar o restante do elenco. Todas as escalações foram absolutamente perfeitas. Tim Allen, canastrão como William Shatner, vive o arrogante Jason Nesmith (que, por sua vez, vive o intrépido comandante Taggart) em um papel que por si só é metalinguagem pura, pois não só seu papel é uma crítica ferina ao astro principal de uma série de TV ou filme que é o centro das atenções, como é, de certa forma, um olhar sobre a própria carreira do ator. E o que dizer de Sigourney Weaver, de cabelo loiro e peitos avantajados em constantes decotes? Ela, vivendo Gwen DeMarco (que, por sua vez, vive a tenente Tawny Madison), encarna o estereótipo da atriz que só foi chamada para compor o elenco por sua voluptuosidade, para servir de atrativo para fãs babões. É absolutamente hilário ver Weaver fazer uma espécie de “anti-Ripley”, papel que a levou ao estrelato em Alien, O Oitavo Passageiro, com direito à menções divertidas aos “dutos” em que ela sempre tem que se enfiar e ao fato de sua personagem na série só repetir o que o computador da nave diz (Uhura feelings, claro). A atriz parece estar em êxtase constante neste papel auto-consciente e que tira risadas do espectador só com sua presença.

Tony Shalhoub faz Fred Kwan (que, por sua vez, vive o sargento-engenheiro Chen), como uma versão de seu famoso detetive Monk, já que ele é o mais “climatizado” dos personagens tanto na Terra quanto no espaço. Daryl Mitchell vive o ex-ator mirim que, em seus tempos áureos, pilotava a Protector e que, agora adulto, continua sendo lembrado como criança e age como tal. Sam Rockwell arrasa como Guy Fleegman, o “extra” genérico de outrora que, justamente por saber que extras morrem o tempo todo em séries de TV como Galaxy Quest, acha que pode morrer a qualquer momento. Sua presença na fita é outra que automaticamente funciona como grande exemplo de metalinguagem e traz sorrisos aos rostos dos espectadores por sua mera e inteligente inserção na narrativa. Finalmente, o saudoso Alan Rickman faz o ator shakespeariano (que foi mesmo seu começo de carreira) que ficou marcado a vida toda por seu papel com o alien Dr. Lazarus e nunca mais consegui desvencilhar-se dessa marca, da qual ele se arrepende profundamente. Seu jeito desgostoso e desanimado por todo o filme é de se tirar o chapéu, sendo o dele o personagem que tem o melhor e mais gratificante arco de desenvolvimento.

Sei que a crítica ficou grande, mas Galaxy Quest ecoa profundamente no imaginário de um fã e, por isso, é de um riqueza infindável, com cada detalhe encaixando-se em algum recôndito escondido da mente coletiva da cultura pop. É um filme que merece toda a atenção e, sim, adoração.

Heróis Fora de Órbita (Galaxy Quest, EUA – 1999)
Direção: Dean Parisot
Roteiro: David Howard, Robert Gordon
Elenco: Tim Allen, Sigourney Weaver, Alan Rickman, Tony Shalhoub, Sam Rockwell, Daryl Mitchell, Enrico Colantoni, Robin Sachs, Patrick Breen, Missi Pyle, Jed Rees, Justin Long, Jeremy Howard, Kaitlin Cullum
Duração: 102 min.

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