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Crítica | Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie

por Rodrigo Pereira
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Medo. Eu já conhecia o medo, porém quando o sentia ele nunca era o mesmo da outra vez, como se viesse em sabores e cores diferentes.

Dizer que uma obra é uma autobiografia ficcional parece contraditório de praticamente todos os pontos de vista. Ou alguém escreveu sua própria biografia ou escreveu uma ficção, não parece existir algum ponto de encontro entre as duas formas narrativas. Chimamanda Ngozie Adichie, entretanto, mostra com extrema qualidade como isso é possível e usa ambos os gêneros literários para criar uma fortíssima história sobre religião, sociedade, costumes, política e repressão.

Em Hibisco Roxo, romance de estreia da autora nigeriana, acompanhamos Kambili, uma adolescente de ensino médio nascida em uma família muito rica e religiosa (talvez mais rica do que religiosa). Moradora da cidade de Enugu, a mesma onde Chimamanda nasceu, a jovem vive em uma enorme casa protegida com sua amável mãe Beatrice, ou simplesmente Mama, seu protetivo irmão mais velho Jaja, seu tirânico pai Eugene, ou simplesmente Papa, e com a governanta Sisi.

Apesar de possuírem uma excelente condição financeira oriunda do lucro das fábricas e do jornal em que Papa é dono, percebemos desde as primeiras páginas do livro a difícil vida levada por Kambili, Jaja e Mama. Isso porque Papa, um cristão fervoroso, mesmo possibilitando uma vida abastada à família, reina absoluto dentro das grossas paredes de sua imponente residência e obriga todos a seguirem à risca os ensinamentos cristãos.

Frequentemente, quando julga que houve desvio dos ensinamentos de Deus, ele agride sua família de forma brutal, causando desde pequenas até gravíssimas lesões, como hemorragias internas. Tudo para depois abraçar a vítima com lágrimas nos olhos enquanto afirma que “o fez para protegê-la”. É em meio a esse ambiente de medo, abuso, repressão e de constante provação que Kambili cresceu, desenvolvendo uma quase doentia busca pela perfeição e aprovação alheia (ela constantemente se arrepende de não fazer algo que pudesse agradar seu pai por medo de uma possível reação negativa).

Depois de apresentados a esse pesado núcleo narrativo, e que Chimamanda constrói impecavelmente, entra em cena a irmã de Eugene, tia Ifeoma (um dos nomes da mãe da autora), uma professora universitária absolutamente progressista e, muito por isso, vive em confronto com o pai de Kambili.

Além da diferença de concepções de mundo, a realidade financeira de tia Ifeoma e seus filhos Amaka, Chima e Obiora não poderia ser mais oposta a de seu irmão, assim como a criação de Kambili e Jaja com seus primos. Enquanto nossa protagonista tem acesso ao melhor que o dinheiro pode comprar, mas vive em um ambiente terrível, ela percebe, quando passa alguns dias com seu irmão na casa de sua tia, na cidade de Nsukka, que seus primos levam uma vida muito mais leve, gostosa e divertida, apesar das grandes dificuldades financeiras.

E é justamente em Nsukka, onde Chimamanda cresceu e entrou para universidade, que Kambili percebe que a vida não precisa ser permeada por escuridão e sofrimento, pode e deve ser tomada por luz e bem-estar.

Aqui entra a qualidade da autora de construir núcleos em que nos inserimos completamente, a ponto de praticamente experimentarmos os mesmos sentimentos bons e ruins da personagem, mas sem apelar para um maniqueísmo óbvio. Ainda que a leveza esteja presente em Nsukka e Enugu tenha uma aura completamente contrária, existem elementos essencialmente contrários aos locais que se encontram, dando tons de cinza à narrativa e pontuando a complexidade humana.

Por exemplo, o jornal Standard, um dos negócios que Eugene é dono, é a principal (e única) forma de resistência na mídia contra os militares que tomaram o controle do país através de um golpe. Ele e Ade Cooker, seu editor, têm suas vidas frequentemente ameaçadas por atacarem os militares e defenderem a democracia. O mesmo Eugene cruel e tirano com sua família trava uma batalha política contra golpistas ditatoriais à altura de grandes figuras de resistência do passado.

Da mesma forma, a parte da família que vive em Nsukka não é composta somente de belos e agradáveis momentos em meio a realidade adversa. Por terem uma mãe professora universitária que incentiva a reflexão e pensamento crítico sobre tudo, as crianças, principalmente Amaka, acabam portando-se como seres superiores aos primos. Kambili, até por conta de sua criação opressiva, é bastante quieta e não costuma devolver as provocações e desaforos de sua prima Amaka, que, por visível implicância, é estúpida em diversos momentos sem necessidade. Claro, o fato de Kambili e Jaja possuírem muito dinheiro graças a seu pai influencia nessas atitudes, porém não as justifica.

Para quem leu Sejamos Todos Feministas, um livro adaptado de uma palestra de Chimamanda, consegue identificar diversos pontos semelhantes da história de vida da autora em Hibisco Roxo. Exatamente por isso é que ela acerta tanto em deixar evidente que as situações na vida nunca são preto no branco, mas, sim, diversos tons acinzentados, com erros e acertos em todos os ambientes sociais.

A religião

Talvez o tema mais abordado na obra, a religião é utilizada para debater sobre intolerância religiosa, colonialismo, machismo e fanatismo. As personagens, em maior ou menor grau, materializam essas questões em suas personalidades.

Eugene, por exemplo, é a encarnação completa do colonialismo. Um homem nigeriano que evita a todo custo falar em igbo, língua falada na Nigéria, optando sempre pelo inglês, assim como denomina herege qualquer pessoa que não siga o cristianismo. Seu maior alvo é o avô de seus filhos e seu próprio pai, Papa Nnukwu, devoto de uma religião tradicionalista e politeísta.

A intolerância, outro traço bastante forte em Eugene, é tamanha que ele não mantém contato com seu pai há anos, e tampouco permite que seus filhos o façam (crianças não podem permanecer por muito tempo no mesmo local de um herege, afinal). Todo o fanatismo, a intolerância religiosa, o colonialismo e o ódio presentes em Eugene encontram um contraponto tanto em Papa Nnukwu quanto em tia Ifeoma.

Enquanto tia Ifeoma aparenta ser muito aberta na questão da religiosidade, em que parece preferir crer em Deus a ficar presa somente a uma crença, Papa Nnukwu é bastante fervoroso em sua fé, mas de uma maneira diferente do fanatismo de seu filho.

Ele realiza seus rituais, participa das celebrações de sua crença e não admite o desrespeito com sua fé (identificamos isso em uma inocente pergunta de Kambili em determinada cerimônia que o deixa brevemente irritado), no entanto a maneira como externa sua crença é leve e tranquila, quase como se uma aura de sabedoria e compreensão exalasse de si e abraçasse a todos. Mesmo quem não é muito religioso ou não possui religião alguma sente-se confortado pelas palavras de Papa Nnukwu e pelas descrições da autora acerca dos cultos do ancião.

Mesmo o machismo, que não escapa nem das manifestações de Papa Nnukwu, parece bater com muito mais força quando vem de Eugene. As conhecidas formas de enxergar a mulher como um objeto existente para única e exclusivamente satisfazer as vontades do homem e obedecê-lo são vistas como normais por Eugene e sempre justificadas com frases do tipo “é a vontade de Deus”. Até mesmo as agressões à sua família possuem essa justificativa, o que nos faz borbulhar de ódio do personagem, revelando novamente a qualidade de Chimamanda na construção de sua obra.

A autora teve uma competência gigantesca em abordar tantas questões diferentes entre si, fazê-las conversar e depositá-las nos traços de personalidade de cada personagem, afetando positivamente os rumos da narrativa. Chimamanda faz toda a complexidade dos temas parecer simples, resultando em uma história envolvente, reflexiva, totalmente atual e necessária para os nossos tempos.

Hibisco Roxo (Purple Hibiscus) — Nigéria, 2003
Autora: Chimamanda Ngozi Adichie
Publicação original: Algonquin Books (EUA) e Kachifo Limited (Nigéria)
Editora: Companhia das Letras, maio de 2011
Tradução: Julia Romeu
328 páginas

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