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Crítica | Hiroshima Meu Amor

por Luiz Santiago
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A concepção de Hiroshima Meu Amor (1959), última obra cinquentista da Nouvelle Vague, veio para o diretor Alain Resnais como um documentário sobre as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Ao pensar em como deveria representar isso, o diretor se viu aprisionado. Ao mesmo tempo que não queria repetir a linha narrativa do holocausto abordada em Noite e Neblina (1956), o diretor não queria deixar o aspecto da destruição de lado, tendo já a ideia de trabalhar a passagem do tempo, a reconstrução das cidades e a forma como as pessoas foram deixando de falar de Hiroshima e Nagasaki, com o “retorno à vida normal“. Foi aí que ele encontrou solo fecundo para plantar a semente que seria o longa: uma mescla de dimensões históricas e emotivas, alteradas e perturbadas constantemente pelos caprichos da memória.

O fato de ser um já experiente documentarista antes de filmar Hiroshima Mon Amour deu a Resnais a clara noção de que representar memória e emoção em tela, tendo como temas adicionais um evento histórico de peso + a discussão sobre destruição e reconstrução, exigia um elemento que a realidade em si (a matéria-prima do documentário) não fornecia por completo. Daí a opção por não criar um documentário e sim uma ficção que parecesse um documentário. Para a tarefa, o cineasta convidou ninguém menos que Marguerite Duras, uma das principais vozes da literatura feminina na Europa, tendo iniciado sua carreira com Os Imprudentes, em 1943. Duras fazia parte do movimento literário Nouveau Roman, uma quebra com o estilo e características do romance psicológico, baseando-se no fluxo de consciência dos personagens, recusando-se a descrevê-los, tratando-os como objetos sujeitos ao espaço e a outros indivíduos-objetos, moldando-se a partir daí. Até aquele momento, apenas um dos livros de Duras havia sido adaptado para o cinema, em Terra Cruel (1957), de René Clément.

A abertura do filme é uma poesia visual de negação de palavras que nos tira completamente o chão. Corpos cobertos de areia, corpos suados, corpos em posição de morte e sexo, corpos vivos e aparentemente mortos, livres e soterrados… corpos são mostrados enquanto ouvimos um jogo de palavras entre Ele (Eiji Okada) e Ela (Emmanuelle Riva), os personagens sem nome que, ao final do filme, tornam-se eles mesmos a face da mutação do corpo, das ideias, da vida: tornam-se cidades. Cenas do filme Hiroshima (1953), de Hideo Sekigawa, também são mostradas nesse início e o horror da guerra, os impactos da destruição e as muitas versões da história se aglutinam em cada uma das imagens que vemos, assim como no diálogo inicial, entre a afirmação, a negação, a revisão e emenda do que alguém afirma ter sentido ou vivido.

__ Você não viu nada em Hiroshima. Nada

__ Eu vi tudo. Eu vi o hospital, tenho certeza disso. O hospital que existe em Hiroshima. Como eu não poderia tê-lo visto?

__ Você não viu um hospital o Hiroshima. Você não viu nada em Hiroshima.

Em As Estátuas Também Morrem (1953) e Toda a Memória do Mundo (1957), Resnais já havia trabalhado os caminhos da construção da História cultural/oral também a partir de versões, de percepções e de sentimentos. Em Hiroshima, seus personagens simplesmente são afogados pela memória, cada um encarnando um elemento básico de recriação do espaço, de segundas e terceiras versões de um fato acontecido. Ele é o “arquiteto ligado à política”. O homem que projeta construções junto aos que detêm o poder. Ela é atriz e está rodando um filme sobre a paz naquela cidade — uma muitíssimo bem colocada linha metalinguística na película. Em todo o tempo, vemos o romance de um dia entre esses indivíduos se descortinar, revelar coisas novas (a traição de ambos) e memórias d’Ela (aquela que representa) para Ele (aquele que projeta). A linguagem é forte, parcialmente enigmática e abarrotadas detalhes, boa parte deles representados de forma pioneira por Resnais, em um uso inovador (e não só para a época!) do flashback como ponto de partida e chegada para o “passado malvado” d’Ela, quando se apaixonou, aos 18 anos, por um oficial nazista.

Em alguns momentos do filme há um certo vazio ou estranheza de ações que mancham essa jornada pessoal dos protagonistas, começando das risadas editadas com distância incômoda dos diálogos, o estranho tapa, a porta aberta do hotel, o fato d’Ele estar o tempo todo presente, seguindo os passos d’Ela de maneira que não nos parece orgânica — culminando na massacrante cena final, uma despedida para ambos, agora soltos no mundo. Do presente, como indivíduos de memória alterada e ressentida, eles pensam em um futuro em que são todas as memórias e ressentimentos de duas cidades.

Ali, firma-se o tipo de memória que, como Hiroshima e Nevers, ou como a música minimalista e densa de Georges Delerue e Giovanni Fusco, ou ainda, como a fotografia de Michio Takahashi e Sacha Vierny, passam, transformam-se e criam outras atmosferas dependendo do que vão enfrentar a partir desse momento. Como som e luz, os sentimentos, as memórias e as cidades se destroem mais uma vez, no coração da dupla, para então renascerem, como se nenhum deles tivesse visto ou vivido nada, embora ambos conservem essa memória alterada do que um dia viveram, condenados a mudar de reação diante do que se lembram. Exatamente como aconteceu com todas as cidades destruídas por todas as guerras. E todas as cidades reconstruídas em seguida, para um dia, talvez, serem destruídas novamente, com base em algo que transpassa o horror. Não o sentimento-atriz. Mas o sentimento-arquiteto. O amor.

Hiroshima Meu Amor (Hiroshima mon amour) — França, 1959
Direção: Alain Resnais
Roteiro: Marguerite Duras
Elenco: Emmanuelle Riva, Eiji Okada, Stella Dassas, Pierre Barbaud, Bernard Fresson
Duração: 90 min.

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