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Crítica | História Verdadeira, de Luciano de Samósata

por Luiz Santiago
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Embora tenha começado a ser escrita por volta do ano 165, foi mesmo durante os anos de 170 e 179 que Luciano de Samósata (escritor romano de origem síria e fala grega) concebeu a maior parte de História Verdadeira (também conhecida como História Verídica), uma sátira onde o autor envia seu herói-narrador de navio até à Lua, onde descreve uma guerra espacial gigantesca entre criaturas bizarras, antes de voltar à Terra e viver mais uma torrente de aventuras impossíveis no mar. Dividido em duas partes, o livro é considerado um dos primeiros e sólidos degraus da proto fantasia e ficção científica na literatura Ocidental, tendo aí a consideração de uma porção de elementos explicitamente explorados e que não são encontrados em tão grande quantidade, variedade ou com tanta atenção em outras narrativas de raiz distante desses gêneros*.

Aqui o leitor irá encontrar viagens espaciais e primeiro contato com inúmeras formas de vida alienígenas; uma guerra interplanetária; uma tentativa imperialista e vontade explícita de colonizar outros planetas; conversas sobre atmosfera artificial, ar líquido, telescópio refletor, estudos sobre gigantismo e até diálogos sobre um certo tipo de tecnologia que nos lembra o robô, isso só para citar alguns elementos. É em História Verdadeira que temos, mesmo dentro de uma assumida sátira do autor a escritores importantes de narrativas absurdas, todos explicitamente esculhambados aqui, como Diógenes, Ctésias de Cnido, Homero e Jambulus, uma imaginativa e hilária viagem, onde o autor não só expõe as suas loucuras, mas também discute uma porção de elementos filosóficos, matemáticos, sociais e religiosos de seu tempo. Séculos depois, de maneira menos elegante e menos engraçada, Cyrano de Bergerac adotaria o mesmo caminho ao escrever a sua Viagem à Lua: O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua (1657).

Na segunda parte da obra, o narrador em seu navio e com sua tripulação acabam sendo abocanhados por uma baleia gigante (teria Luciano alguma influência do mito cristão sobre o profeta Jonas? O texto bíblico já era bem conhecido na época do autor…), e este bloco da história é, em essência, o mais chatinho, embora carregue ingredientes de aventura que nos lembram as Viagens Extraordinárias escritas por Jules Verne. Dentro da colossal baleia, o narrador e sua tripulação encontram diferentes povos, alguns náufragos que também tinham sido engolidos pelo bicho e toda uma geografia própria que é bem divertido de se ler sobre, mesmo que seja uma abordagem que funcionaria melhor se estivesse em outra outra criação, num outro contexto, e não como sequência de uma viagem à Lua.

Como eu já expus acima, há um grande debate e tentativa de classificação de História Verdadeira num certo gênero ou proto-gênero. Essas discussões, embora raramente cheguem a algum lugar, acabam sendo muito proveitosas no sentido de retirar elementos do livro e reforçar a capacidade criativa de Luciano, que de tanto colocar-se e brincar com o seu mundo, dá motivos para que muitos classifiquem História Verdadeira como autoficção. Além disso, é bem divertido discutir loucuras literárias clássicas como a Batracomiomaquia — ou A Batalha dos Sapos e Ratos –; a peça Os Pássaros, de Aristófanes (referida explicitamente aqui) e principalmente As Maravilhas de Além Thule, de Diógenes, tentando encontrar pontos comuns entre tantas maluquices expostas nessas obras da literatura clássica.

História Verdadeira é mesmo imperdível, especialmente para aqueles que gostam muito de ficção científica e de fantasia. Aliás, diferente do que possa parecer, a obra não se sustenta ou surpreende apenas por seu valor histórico, por sua aura de pioneirismo no tratamento e na exposição de temas hoje muito conhecidos e saturados… ou na forma crítica ao romance grego com que o autor registra essas impossíveis viagens. História Verdadeira é genuinamente engraçado e, mesclando ciência do primeiro século de nossa Era com as alfinetadas literárias dadas por Luciano a colegas de época ou já falecidos, mais o seu modo peculiar de pensar dilemas filosóficos, religiosos, jurídicos, comportamentais e sociais, o livro consegue garantir uma inesquecível exploração do espaço sideral, das profundezas de uma baleia colossal e de “ilhas temáticas” que ao mesmo tempo encantam e assustam o leitor. Um clássico delicioso e extremamente importante por tudo aquilo que cria.

* Nesse campo, temos indicações vindas dos mais variados gostos e pontos de vista dos fregueses, cada um buscando em obras clássicas uma raiz proto para a literatura de fantasia e sci-fi. Dos exemplos anteriores à esta História Verdadeira, podemos citar as seguintes criações frequentemente apontadas por articulistas, pesquisadores e escritores do gênero como suas eleitas ao título de grandes precursoras: elementos da Epopeia de Gilgámesh – Ele Que o Abismo Viu, versão de Sin-leqi-unninni (c. séculos 13 a 12 a.C., em sua forma atualmente conhecida); elementos do épico sânscrito Ramayana (500 a 100 a.C., em sua forma atualmente conhecida); elementos utópicos da República de Platão (c. 375 a.C.); três peças de Aristófanes, a saber, As Nuvens (423 a.C.), A Paz (421 a.C.) e Os Pássaros (414 a.C.) e por fim, Na Superfície do Disco Lunar (De Facie em Orbe Lunae, século 1, início do 2), parte integrante da Moralia de Plutarco.

História Verdadeira (Ἀληθῆ διηγήματα / Alēthē diēgēmata / Vera Historia / Verae Historiae) — Síria do Império Romano, c. 165 – 175
Autor: Luciano de Samósata
Edição lida para esta crítica: Luciano II
Editora: Imprensa da Universidade de Coimbra (Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos)
Tradução: Custódio Magueijo
81 páginas

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