É regra quase absoluta que os Contos de Fadas consumidos há algumas gerações por nós são versões sanitizadas das versões que foram colhidas e levadas a termo por diversos folcloristas, linguistas e autores ao longo dos séculos. Acostumamo-nos às historinhas leves, que acabam bem, com moral edificante e, muitas vezes, levadas para o audiovisual da maneira mais colorida possível, inclusive e especialmente, claro, pela própria Disney, grande responsável pelas abordagens mais “fofas” e de preferência musicadas dessas histórias que, se formos cavar um pouco mais a fundo, revelarão um lado que preferimos ignorar. Não que a cultura pop não tenha por vezes retornado à fonte, claro, oferecendo obras mais densas e sombrias, mas os mais famosos desses contos são normalmente fincados no imaginário popular moderno da maneira menos agressiva possível.
Talvez pensando nisso é que Patrick Horvath tenha tido a ideia para Hoje É um Belo Dia para Matar ou, no original com título rimado, Beneath the Trees Where Nobody Sees, minissérie em quadrinhos em seis edições publicadas entre outubro de 2023 e maio de 2024 nos EUA e, por aqui, em outubro de 2025. Nela, somos apresentados à ursa parda Samantha Strong, respeitada dona de uma loja de ferragens na idílica cidadezinha de Bosque do Riacho, onde ela vive na maior tranquilidade. Mas Samantha tem um pequeno segredo que ninguém pode saber: ela é uma serial killer que, quando vem aquela vontade que só pode ser eliminada temporariamente com sangue, parte para a cidade grande em seu carro, escolhe uma vítima, a assassina na floresta, corta o corpo em pedacinhos e enterra cada um deles por ali mesmo. Metódica como Dexter Morgan em seu modus operandi, ela segue um código cuja regra mais importante é não matar ninguém da ou na cidade onde mora, tudo para preservar sua paz de espírito e sua imaculada e organizada vida.

No entanto, durante um desfile que comemora o bicentenário de Bosque do Riacho, o idoso e desmemoriado Martin, um bode de pelagem branca, aparece morto e amarrado ao mastro de um dos carros alegóricos para todo mundo ver, fazendo com que Samantha comece a investigar quem poderia ter sido o responsável para evitar que os olhos de seus concidadãos eventualmente acabem virando para ela. E é assim, portanto, como os leitores podem imaginar, que sua vida começa a virar de cabeça para baixo, com o roteiro de Horvath mantendo um passo calmo, mas certeiro como sua protagonista, não economizando em imagens gráficas fortes que contrastam lindamente com sua arte em tons pasteis que poderia muito facilmente ser confundida – e não sem querer, obviamente – como a de um livro para crianças, com um sem-número de bichinhos fofinhos que poderiam facilmente ser pelúcias.
É, como disse, um retorno esperto aos Contos de Fadas sombrios da época anterior a eles serem levados até a luz. Mas Horvath jamais deixa as sombras invadirem sua obra, pelo menos não em aparência, já que, como bem sabemos, elas enganam e enganam mesmo. Ao contrário, ele faz um excelente exercício de cinismo e sarcasmo ao nunca deixa de usar o verniz infantil e até lúdico para esconder suas intenções sinistras e macabras, intenções essas que ele leva até as últimas consequências, mas sem caminhar para o exagero e para o histrionismo sanguinolento de obras cômicas na linha de Happy Tree Friends ou, na outra ponta, para a tensão realista de criações como o clássico Em Busca de Watership Down. Diria que o roteirista e desenhista encontra o “ponto mágico” de equilíbrio que faz de seu conto uma obra que até pode ter diversos elementos familiares, como as conexões que estabeleci em meus comentários, mas que é distintamente uma história com personalidade e estrutura próprias e que imediatamente cria um universo que o leitor pode aceitar sem muito esforço.
A história de Samantha, uma ursa que só quer ficar em paz em seu canto e volta e meia desopilar o fígado matando alguém (quem nunca?), é o tipo de quadrinhos que faz o melhor uso possível do que a mídia oferece, ou seja, permite visuais de uma beleza enganosa que se chocam de frente com a narração da protagonista em seu sofrimento constante para voltar a ter tranquilidade em seu pedacinho de mundo. Hoje É um Belo Dia para Matar, por isso, talvez seja uma hábil representação de tudo aquilo que ansiamos diariamente – e não estou falando de matar ninguém… ou será que estou? – em nossas próprias vidas e Patrick Horvath acaba entregando uma obra que, por mais estranha que possa parecer, torna fácil a conexão empática com Samantha e sua jornada para voltar a ser o que era, ao mesmo tempo em que nos permite reconhecer as sombras que por vezes ameaçam nos envelopar como nos mais clássicos Contos de Fadas.
Hoje É um Belo Dia para Matar (Beneath the Trees Where Nobody Sees – EUA, 2023/2024)
Roteiro: Patrick Horvath
Arte: Patrick Horvath
Letras: Hassan Otsmane-Elhaou
Editoria: Jake Williams, Maggie Howell
Editora: IDW Publishing
Datas originais de publicação: 18 de outubro e 13 de dezembro de 2023; 07 de fevereiro, 20 de março, 10 de abril e 08 de maio de 2024
Editora no Brasil: DarkSide Books
Data de publicação no Brasil: 06 de outubro de 2025 (encadernado)
Tradução: Érico Assis
Páginas: 160
