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Crítica | Homem Animal #18 – 26: Deus Ex Machina (1990)

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Grant Morrison é um gênio louco.

Esta é a conclusão a que o leitor chega após terminar a leitura do run do autor na revista Homem Animal, com o arco Deus ex Machina. Absolutamente todas as pontas soltas deixadas propositalmente em O Evangelho do Coiote e, principalmente, em Origem das Espécies são amarradas aqui e ganham um estágio final inimaginável, com quebra de quarta parede e consequente insana metalinguagem, inúmeras referências a ciências e pseudo-ciências, esoterismo, surrealismo e uma viagem temporal pelos quadrinhos do Universo DC pré-Crise e à própria Crise nas Infinitas Terras.

Estamos falando de uma história que explica, em definitivo, a lenda que Grant Morrison se tornaria após terminar a saga na edição #26 da Animal Man Vol.1, em agosto de 1990. Entre muita loucura e jogadas inteligentes em diferentes realidades e através dos tempos, o autor coloca Buddy Baker em uma espécie de curso cósmico de loucura ordenada para nona arte, cujas teorias e experiências têm como ponto de partida o então perdido e ‘desdesenhado’ James Highwater, em Brincando nos Campos do Senhor.

A primeira indicação de que Maxine tem poderes.

A primeira indicação de que Maxine também tem poderes.

É importante lembrar que desde o arco passado as indicações de metalinguagem assumiram formas cada vez mais fortes nas revistas e que a brincadeira com o texto e a arte se tornava cada vez mais desafiadora e inovadora. Coloquemos, por exemplo, aquela frase de Albert Einstein que vimos alterada em um computador na edição #8: Deus não joga dados com o Universo. [mas eu sim]; ou a primeira aparição do segundo Mestre dos Espelhos e a primeira aparição de Highwater nesta mesma edição, que teriam, no futuro, repercussões imensas, a começar pelo fato de o computador com a frase alterada de Einstein ser do próprio Morrison, que curiosamente também faz uma aparição em Assombrações, acordando Highwater de um sonho e mostrando um cenário que só seria visto novamente na edição #26, Deus ex Machina.

A passagem de James Highwater de coadjuvante misterioso para um segundo protagonista na edição #18 dá início a uma virada no jogo. A trama começa em uma única página com Roger e Tricia tentando lidar com um Buddy em estado de choque, mas ainda não sabemos o por quê. Na sequência seguinte temos uma indicação interessante sobre Maxine, que diz para Cliff que não gosta de Highwater porque “ele vai levar o papai embora e nós nunca mais veremos ele”.

Nos Novos 52, sabemos que Maxine tem poderes, então esta se torna a primeira manifestação, quase esquecida, de algo que viria se mostrar bem mais forte no futuro. No bloco seguinte e já entrando na edição #19, temos Buddy e Highwater no Arizona, em uma viagem psicodélica que nos dá acesso a conceitos importantes como o Campo Morfogenético (ou O Vermelho, lugar onde todas as forças/características de animais do Universo podem ser acessadas); a origem do segundo Homem Animal — o primeiro, pré-Crise aparece falando coisas incompreensíveis como: “eles me apagaram”; “eles estão vendo a gente”; “eu fui apagado da cronologia” –; o conhecimento de Buddy da Crise nas Infinitas Terras e a indicação de uma crise futura, talvez Crise Final ou Crise Infinita ou nenhuma delas, apenas mais uma outra Crise profetizada para o Universo DC.

Uma das coisas mais geniais e importantes realizadas na nona arte. Eu realmente me emocionei com isso.

Uma das coisas mais geniais e importantes realizadas na nona arte.

A arte de Chaz Troug e Doug Hazlewood em Uma Nova Ciência da Vida é uma verdadeira obra-prima. A viagem através do peiote e todo o elemento cósmico e místico necessários para sustentar visualmente uma abordagem dessas surgem aqui com a melhor diagramação de página, melhor representação visual e interação dos personagens com cenários Universais em toda a saga. É um grande presente visual que recebemos, ainda melhorado pelas excelentes cores de Tatjana Wood e pelo ótimo trabalho de letras de John Costanza, para os quais não tenho nenhuma reclamação nem neste arco e nem nas edições anteriores, diferente da arte, que está um pouco mais fraca em Origem das Espécies.

Ainda nesta edição, temos uma das páginas mais importantes dos quadrinhos da DC desde a ocorrência da Crise. Depois de descobrir dois grandes segredos elementais formulados como cerco à teoria da ordem implícita de David Bohm,

  1. tudo está conectado;
  2. os personagens são “torturados e mortos para entretenimento dos outros“…

…Buddy descobre o terceiro e chocante segredo: ele está sendo observado e agora pode nos ver. Não existe um único leitor de quadrinhos que não sinta algum tipo de forte emoção nesse página inteira do rosto espantado e desesperado de Buddy olhando diretamente para nós e dizendo: I CAN SEE YOU! Momento realmente memorável e um dos mais prazerosos recursos de quebra da quarta parede nos quadrinhos (lembremos que esta edição é de janeiro de 1990!).

A busca que a Raposita (antigo amigo imaginário de Morrison que vem dar um recado para Buddy) indica para que o herói faça, termina com uma tragédia impactante: o brutal assassinato de Ellen, Maxine e Cliff por um homem chamado Lennox, o Coruja Branca (reparem que no final da edição há sangue nas garras da coruja, no calendário).

O Último Inimigo (#20) nos traz um sofrimento da estirpe de A Queda de Murdock, a começar da excelente capa de Brian Bolland, que indica Buddy Baker tentando suicídio (capa polêmica e poderosa!), seguindo com o luto dele ao longo de toda edição. Uma tragédia maior é evitada com uma inesperada ligação do Mestre dos Espelhos. Estamos a poucos passos de ver o Homem Animal realmente se tornar uma fera selvagem e assassina, sedenta de vingança em Dentes e Garras. Novamente devemos destacar a arte, que assume um incrível dinamismo de movimento do herói pelos quadros, expondo-o a cenas de lutas que não são necessariamente épicas, mas representadas de maneira extremamente inteligente e visualmente cativante.

O Homem Animal encontra-se com Grant Morrison.

O Homem Animal encontra-se com Grant Morrison: “Eu sou o seu escritor“.

Da edição #22, O Tempo na Garrafa, até o final do arco, em Deus ex Machina, o leitor irá mergulhar em uma aventura através do espaço, do tempo e dos sentimentos pesados de um homem que teve sua família assassinada por um roteirista de quadrinhos que ele em breve encontraria. Nesta reta final, Morrison não nos poupa o resgate de personagens esquecidos e obscuros de diferentes eras e mundos da DC, tendo como pivô o Pirata do Tempo que reúne todo mundo que precisa ser reunido no Asilo Arkham e amplia ainda mais a visão de Buddy para o que ele realmente é e para o mundo do qual ele faz parte. Era natural que esse diálogo seguisse para um “último encontro” da criatura com o seu criador (como o Coiote Astuto fez com “Deus”, lembram-se?), e isto de fato acontece na edição #26, que coloca o próprio Morrison em cena, falando diretamente com o público, agradecendo às pessoas que estiveram com ele durante os 26 números que escreveu, fazendo auto-críticas, alfinetando a indústria dos quadrinhos e mostrando alguns pontos fracos desse Universo dos super heróis.

O final da saga do Homem Animal sob a pena de Grant Morrison é uma das mais prazerosas experiências que podemos ter em uma leitura de HQ. O toque metalinguístico do autor faz toda a diferença, e seu humor, melancolia, confissões e exploração precisa e cuidadosa dos personagens ao longo de um grande número de edições, criando atalhos que levam a um único caminho no final de tudo é, em uma palavra, sublime. Poucas vezes nós temos o impulso imediato, ao terminar uma longa aventura, de chamar o roteirista de louco, gênio e inúmeros variantes dessas palavras, tudo ao mesmo tempo. Mas isso acontece aqui. Impulso coroado pela vontade de começar a ler toda a obra novamente. Pois é. Este run é bom a esse nível. A sagração merecida e definitiva para o Homem Animal.

Homem Animal: Deus ex Machina (Animal Man Vol.1 #18 – 26) — EUA, dezembro de 1989 a agosto de 1990
Roteiro: Grant Morrison
Arte: Chaz Truog / Paris Cullins (#22)
Arte-final: Doug Hazlewood / Steve Montano (#22) / Mark Farmer (#25)
Cores: Tatjana Wood
Letras: John Costanza
Capas: Brian Bolland
Editoria: Karen Berger, Art Young
24 páginas (cada edição)

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