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Crítica | Homem-Aranha no Aranhaverso

por Gabriel Carvalho
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“Eu enxergo esse brilho em você. É espetacular. O que você quiser escolher fazer com isso, você será incrível.”

Homem-Aranha no Aranhaverso é uma gigantesca carta de amor ao símbolo que ostenta em suas diversas versões e cores, mesmo mascarando-se da maior parte das narrativas costumeiramente inerentes a esse personagem icônico, em anos de adaptações cinematográficas que acabaram retornando ao mesmo ponto de princípio. O saudoso Stan Lee, em inúmeras entrevistas, recorreu a um pensamento, um pouco exagerado até, de que a roupa do super-herói cobriria todo o corpo da pessoa por trás da máscara para que, em consequência, qualquer um pudesse se enxergar no seu interior. Mesmo que seja um retcon do autor, uma associação entre o leitor e o conteúdo foi realmente um dos alicerces originais para o Homem-Aranha, embora, teoricamente, mais um personagem masculino e branco estivesse sendo criado pelas mãos talentosas de Stan Lee e Steve Ditko. Os problemas de um cotidiano, as frustrações paralelas ao combate contra super-vilões, entre outras questões, eram resgatados, porque o chamado ao heroísmo deixava de ser uma coisa profética, mas urgente a qualquer um meramente picado por uma aranha radioativa.

Se o Super-Homem é o herói utópico, o Homem-Aranha é o herói “possível”, o herói que realmente conseguiríamos acreditar, consideravelmente imperfeito, contudo, honesto com a sua força de vontade e com os deveres que carrega, gratuitamente, nas mãos. Quando uma fenda interdimensional é aberta no meio da cidade de Nova Iorque, vários mundos se cruzam, juntando Homens-Aranhas de distintas realidades, incluindo até mesmo a do Homem-Aranha que somos acostumados, agora envelhecido e entristecido. “Você não pode pensar em salvar o mundo, você tem que pensar em salvar uma pessoa”, comenta Peter Parker (Jake Johnson) ao jovem Miles Morales (Shameik Moore). Uma vertente de aprendizado, entre um mestre em derrocada e um estudante em desorientação, movimenta esse relacionamento, entre o classicismo e a modernidade, enfim unindo as duas possibilidades de interpretação do personagem, senão muito mais que duas possibilidades, conversando umas com as outras – um símbolo que nunca será ultrapassado, constantemente renovado, passando a comportar também outros demais ambientes.

Um protagonista pequeno, com um senso de desconhecimento ao mundo é apresentado pela animação – o seu colega de quarto, por exemplo, é uma pessoa com que Morales nunca interagiu. As tantas particularidades de Miles Morales perante os demais Homens-Aranhas, como as músicas que escuta, os hobbies que pratica, a rotina ordinária que vive, em uma Nova Iorque outra que não a de Peter Parker, o torna um personagem verdadeiramente original, instigando-nos a conhecê-lo. Porque Miles Morales é um garoto carismático e uma outra mitologia está sendo construída, uma mitologia parcialmente como a nossa, em que o Homem-Aranha é uma realidade – mesmo que nas páginas dos quadrinhos, não nas reportagens jornalísticas. O garoto enxerga um herói, coisa que nós mesmos, meros espectadores, fomos acostumados a enxergar no traje clássico. Acaba sendo natural as percepções diferenciadas, os super-vilões que ganham visuais renovados, e Phil Lord e Christopher Miller, assinando o roteiro, compreendem Homem-Aranha no Aranhaverso como redescoberta de universos, como os primeiros passos de um alguém ainda tão inexperiente.

Uma modernidade contrasta com o tom de quadrinhos que os responsáveis pela animação expõem com tanto orgulho, sem medo algum de estarem criando justamente uma adaptação de quadrinhos. O visual não é unicamente dinâmico durante as cenas de ação, porque a agilidade é presente em outras sequências do filme, como na apresentação dos personagens. Os conceitos de multi-verso, considerados quase estrangeiros ao público de cinema, são apresentados com uma ingenuidade gostosa, porque tudo remeterá, no final das contas, a uma abordagem romântica do personagem, com o arco dramático clássico e que, no caso de Miles Morales, encaixa-se certeiramente dentro do seu contexto e da sua realidade. O personagem do seu tio, Aaron Davis (Mahershala Ali), é essencial para essa conexão do garoto a um espaço problemático que pertence a si, entre pessoas que acabam se direcionando equivocadamente a uma vida de erros. O cômico também é estabelecido com precisão, com uma ironia subjacente – as exceções são as situações em que o drama de Peter Parker é diminuído pontualmente por piadas e certas quebras de timing.

Quase como uma revisão do significado de um Homem-Aranha, que também pode ser um porco, um detetive noir, um personagem de anime ou uma garota, Homem-Aranha no Aranhaverso é uma das produções mais belas acerca de super-heróis, tanto visualmente quanto discursivamente. O Homem-Aranha é você, ou seja, um símbolo que parte de uma ideia de associação de que qualquer pessoa pode ser um super-herói. De que qualquer pessoa possui os poderes suficientes para arcar com grandes responsabilidades. Quando Tobey Maguire era carregado pelos passageiros de um trem, em Homem-Aranha 2, sem máscara para o distinguir de qualquer outro cidadão ali presente, a mensagem era a mesma – um super-herói que não salva o povo, mas que representa o povo. “Ele tem a idade do meu filho”, comentava um dos figurantes. Quem quer que seja o espectador de cinema, um menino negro, um adulto frustrado, um senhor em preto e branco, uma garota rebelde, um robô e até mesmo um porco animado, o Homem-Aranha estará o representando, em todas as épocas, em todos os lugares, em todas as dimensões e aranhaversos.

  • Contém cenas pós-créditos.

Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man: Into the Spider Verse) – EUA, 2018
Direção: Bob Persichetti, Peter Ramsey, Rodney Rothman
Roteiro: Phil Lord, Christopher Miller
Elenco: Shameik Moore, Hailee Steinfeld, Mahershala Ali, Jake Johnson, Liev Schreiber, Nicolas Cage, John Mulaney, Lily Tomlin
Duração: 117 min.

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