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Crítica | Homem-Aranha: Nunca Mais!

por Gabriel Carvalho
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“Eu era só um jovem e descuidado adolescente quando me tornei o Homem-Aranha. Mas os anos costumam passar… Mudar o mundo a nossa volta… E todo menino, cedo ou mais tarde, precisa se desfazer de seus brinquedos e se tornar um homem!”

Contém spoilers.

As problemáticas nas vidas de super-heróis costumavam variar de acordo com o vilão no qual o personagem teria de enfrentar. Palhaços criminosos, nazistas sanguinários ou então seres extraterrestres malignos. Todas essas identificações vilanescas condensariam um conceito, possivelmente categorizado por maniqueísta, do mal. A guerra, predisposição que contribuiu  a tornar o Capitão América ícone dos anos 40, já não encontrava-se presente em seus termos absolutos. Jovens e crianças manuseavam as revistas em troca de escapismo puro, e não mais identificação. Sendo assim, no ano de 1963, a dupla Stan Lee e Steve Ditko trouxe para a Marvel Comics complexidades e antagonismos mais relacionáveis. Bullying, problemas financeiros, falácias de caluniosos, problemas com garotas, entes queridos enfermos, gripes do dia a dia, entre outras temáticas tornariam o Homem-Aranha, mesmo ainda confrontado por polvos e duendes, em uma figura mais associável ao leitor.

A mentalidade de Peter Parker utilizava como base, na maioria das edições até aqui, a máxima, em uma síntese dos discursos proferidos pelo Tio Ben em décadas e décadas de histórias em quadrinhos, de que com grandes poderes viriam grandes responsabilidades. Uma idealização fácil de ser absorvida teoricamente. Mas qual seria o papel do herói afinal? Lutar contra o crime independente de ser vítima de chacota? Independente de ser taxado como ameaça pública e fraude? Independente de que a vida de super-herói não permita a este homem ser apenas um simples garoto que acabou de se mudar da casa da tia e busca estudar as matérias que lhe são disciplinadas na universidade?

Os poderes que Peter adquiriu não deveriam dar margem a um fardo. Um fardo quase impossível de ser carregado nas costas, mesmo naquelas de um alguém com a força de uma aranha. O amigão da vizinhança não poderia mais existir, afinal, crianças hão de crescer. Mas desistir é crescer? Desistir de lutar pelos outros é crescer? Desistir de salvar vidas inocentes é crescer? Nas páginas da quinquagésima edição de The Amazing Spider-Man visões diferentes sobre o assunto eram discorridas espetacularmente por Lee/Romita, em uma incrível dissertação da dupla sobre os deveres, funções e papeis de um herói ficcional. Os dois dariam ao leitor completa compreensão da atitude extrema que Peter Parker, a personalidade coberta pela máscara de aracnídeo, tomaria na metade do número. Em uma noite chuvosa, o herói caminhava desiludido em direção contrária não só ao seu uniforme, jogado dentro de uma lixeira comum de um beco solitário, mas sim em antítese a seu alter ego. Homem-Aranha? Nunca mais.

Uma crise existencial que só seria superada pela a que eu tive revendo certos filmes do personagem.

Engana-se porém quem pensa que esta é a primeira vez que ocorre a Peter uma crise existencial. No arco composto dos números #17, 18 e 19 da revista, o garoto cogitou seriamente em abandonar o manto. Esta edição, contudo, é mesma a primeiríssima a arriscar tirar dos pensamentos do garoto o seu dever como herói. Homem-Aranha: Nunca Mais! concretiza algumas constantes, todavia leves, desmotivações anteriores, muitas vezes atribuídas por meio de pensamentos resididos nos quadros finais de diversas histórias que permearam a mitologia do personagem desde 1963. Muitos dos créditos derivados da espetacular repercussão que tal edição viria a ganhar no futuro, condizente até, para muitos, o título de obra-prima, devem ser direcionados a John Romita. O ilustrador transmite com maestria momentos impactantes e conduz com perfeição as cenas dos devaneios existenciais de Peter. A clássica splash page,  destacada nesta crítica e readaptada em diversas outras HQs e até mesmo em Homem-Aranha 2 (filme consideravelmente baseado neste arco), ilustra um dos momentos mais melancólicos e desesperançosos da vida do herói. Trata-se da mais memorável cena do Cabeça de Teia, um posto compartilhado com a derradeira página na qual o personagem aparece segurando sua namorada morta em seus braços, em A Noite em que Gwen Stacy Morreu.

A história consegue manter um ritmo coeso sem desperdiçar nenhuma página com combates redundantes contra supervilões desinteressantes. É um trabalho mais limpo, lembrando tanto a edição #17 citada anteriormente, quanto a edição #25. A introdução de um criminoso potencialmente perigoso não encontra paralelo com a maioria das introduções surreais – mas não menos divertidas e interessantes – dos inimigos da clássica galeria de vilões do Cabeça de Teia. O Rei do Crime é muito mais remetente à realidade violenta de uma bandidagem gananciosa, esperta o suficiente em aproveitar as menores chances que o destino prover. Os conflitos megalomaníacos dão margem a um aprofundamento mais ligado à vida pessoal de Peter Parker, que continua a evoluir após a bagunça generalizada criada por Lee/Ditko no pós-Saga do Planejador Mestre. O relacionamento entre Peter e Gwen ganha mais espaço, com Stan Lee conseguindo dar à garota ainda mais credibilidade como possível par romântico para Parker. Um conjunto impecável.

“Agora, afinal… Tudo está claro para mim mais uma vez. Eu jamais poderei renunciar minha identidade de Homem-Aranha! Nem falhar em usar os meus poderes que um destino misterioso resolveu me dar! Não importa quão insuportável esse fardo possa ser… Não importa o tamanho do meu sacrifício pessoal… Jamais poderei permitir que um inocente venha a sofrer porque o Homem-Aranha não agiu… E eu juro que nunca sofrerá!”

The Amazing Spider-Man #50, 51 e 52

Mesmo que Nunca Mais! fale perfeitamente por si só, as suas duas partes sequenciais: Nas Garras do Rei do Crime e A Morte de um Herói amarram incrivelmente as pontas soltas deixadas na edição passada, como o surgimento de um novo chefão do crime e o aparente retorno de Frederick Foswell à criminalidade. Após terem introduzido no número anterior o Rei do Crime, um dos maiores vilões do universo Marvel dos quadrinhos, a dupla continua a explorá-lo mediante um magnífico trabalho de caracterização, visto que o personagem é logo transformado em um oponente às alturas do Teioso.

O Rei do Crime demonstra extremo sangue frio, trazendo à tona uma dúvida entre executar ou extorquir J. Jonah Jameson, personagem este que vinha trazendo matérias sobre o aumento da criminalidade. O vilão ainda protagoniza combates bem articulados entre ele e o Homem-Aranha, exaltando mais camadas além das transparentes em uma figura imponente de chefão do crime organizado. Uma análise do personagem de J. Jonah Jameson para além de sua participação em Nunca Mais!, aponta a existência de mais momentos leves relacionados ao editor do Clarim Diário. Tais momentos abordam sua covardia e hipocrisia. Além da carga humorística entorno do personagem, seu envolvimento com Frederick Foswell, que aparenta ter mudado para o lado do Rei do Crime, garante um teor dramático mais acentuado nas últimas páginas de A Morte de um Herói.

O Homem-Aranha é raquítico comparado ao Rei do Crime.

Debutado como o misterioso líder dos Executores em The Amazing Spider-Man #10, Foswell foi cada vez ganhando mais atenção no roteiro de Stan Lee, que permitiu o desenvolvimento do personagem como um criminoso não-reincidente. Seu envolvimento com o submundo continuou por meio do disfarce de Caolho (Patch, no original), um meio ilícito do personagem conseguir matérias “quentíssimas” para o Clarim Diário. Aqui, mesmo fortemente atentado a retornar à criminalidade após a pressuposta queda do Teioso na edição 50, resolve confrontar o Rei do Crime ao ser noticiado que o mesmo mandou matar tanto o Aranha quanto Jameson. Em fuga, acaba sacrificando-se para salvar seu chefe do Clarim Diário. Em paráfrase de J. Jonah Jameson, Foswell em sua última ação morre como um herói, redimindo-se. Ademais a esses pontos, as duas edições posteriores à cinquenta ainda tangenciam uma preocupação de Betty Brant pelo seu noivo Ned Leeds, que resolve procurar por Jonah, além de introduzir um dos mais recorrentes coadjuvantes da revista, Robbie Robertson.

O final de A Morte de um Herói indica mais uma relação com Nunca Mais!, pois situa o Homem-Aranha no meio de uma contínua repressão popular e midiática. No entanto, agora motivado a arcar com as suas responsabilidades, o herói deixa levar a situação com seu característico bom humor. Um humor não tão genuíno, mas correspondente a uma escapatória do injusto realismo. Ainda que as edições conseguintes à cinquenta sustentem um storytelling bem construído, a antecessora é a verdadeira ditadora de diversos conceitos que conhecemos na problemática e complexa jornada do Espetacular Homem-Aranha. Um herói, mas acima de tudo uma pessoa. Gente como a gente. A desistência de objetivos, a subversão da ideia de responsabilidade, o medo de fardos são alguns pontos extremamente pertinentes e presentes na sociedade, tanto a contemporânea quanto a da década de 60. São temáticas universais que conotam ao personagem o status de lenda, que embora fictícia, ainda permanece absurdamente viva no imaginário popular.

Homem-Aranha: Nunca Mais! (Spider-Man: No More!) — EUA, 1967
Edições:
The Amazing Spider-Man #50, #51-52
Roteiro: Stan Lee
Arte: John Romita
Arte-final: Mike Esposito
Letras: Sam Rosen
Cores: Stan Goldberg
Capas: John Romita, Stan Goldberg, Sam Rosen
Data de publicação: julho de 1967 a setembro de 1967
Páginas: 20 cada edição

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