A prolífica Era de Prata dos quadrinhos já havia trazido o Quarteto Fantástico para a Marvel Comics ao final de 1961, graças à mágica de Stan Lee e Jack Kirby. No ano seguinte, a mesma dupla trabalharia nos conceitos que levariam à criação de um dos mais importantes heróis da Nona Arte, o Homem-Aranha. Suas principais características marcariam para sempre o “estilo Marvel” de ser, com um adolescente tímido e vítima de agressões de valentões de sua escola ganhando magníficos poderes a partir da picada de uma aranha radioativa. Mesmo com superforça e a habilidade de escalar paredes, o personagem continuaria a lidar com problemas mundanos, do dia-a-dia de muita gente: cuidar dos parentes mais velhos, provas, horário de escola, trabalho para ganhar algum dinheiro, pagar contas e assim por diante. Nascia o protótipo do super-herói com quem os leitores dos quadrinhos poderiam mais facilmente identificar-se.
É notório que Stan Lee sempre funcionou muito mais como uma força motriz dentro da Marvel Comics e não necessariamente como uma força verdadeiramente criativa, daquelas de se debruçar em pranchetas. Seu valor para a indústria de quadrinhos não pode de forma alguma ser diminuído, mas a grande verdade é que ele sempre se cercou de grandes nomes que efetivamente carregavam o proverbial piano. Kirby, então, começou a trabalhar no novo personagem a partir de um protótipo de herói que ele e Joe Simon haviam criado nos anos 50, mas jamais publicado. Era, como Peter Parker, um menino órfão que vivia com um casal mais idoso e que encontrava um anel que lhe dava poderes sobre-humanos, transformando-o no Silver Spider. Kirby, depois de desenhar algumas páginas do que ele imaginava ser o herói, teve suas ideias rejeitadas por Lee, que queria algo ainda mais “comum” e “terreno” com quem os jovens pudessem realmente se identificar.
Claro que as histórias sobre a interferência de Lee nesse processo criativo variam, mas o valor desse grande nome da indústria de quadrinhos é saber “desenhar conceitualmente” um produto, um personagem e não há dúvidas que seu trabalho como editor foi um dos grandes responsáveis pelo Homem-Aranha. Até porque, vale ressaltar, há inconsistências até mesmo entre os relatos de Simon e Kirby sobre o que cada um deles havia criado anos antes. Seja como for, Lee, que não havia gostado do trabalho de Kirby, pediu para Steve Ditko, que seria o responsável pela arte-finalização do lápis de Kirby, tentar algo diferente. E foi Ditko quem acabou criando o desenho final do famoso uniforme do Homem-Aranha que cobria seu corpo integralmente, algo raro para a época (ou mesmo para hoje em dia, se pararmos para pensar), com disparadores mecânicos de teia no pulso.
Mas publicar o Homem-Aranha não foi uma tarefa trivial. Lee conseguiu convencer Martin Goodman a deixá-lo tentar algo diferente, usando o que seria o último número da revista em formato de antologia de ficção científica e histórias sobrenaturais Amazing Adult Fantasy, como veículo. A palavra “adult” foi retirada especialmente para a edição #15, que marcaria o début do Homem-Aranha e pronto, estava dada a largada para um dos mais importantes super-heróis da história dos quadrinhos. No entanto, vale notar que a características de antologia da revista continuou e, das 26 páginas da publicação, apenas 12 eram dedicadas ao futuro amigão da vizinhança.
E, em 12 páginas, Lee e Ditko (e Kirby, sejamos justos) fizeram o impossível: estabeleceram bases para um novo e bem diferente herói, bases essas tão sólidas que sua origem foi uma das que menos mudou ao longo de todas essas décadas. Continuamos até hoje, por repetidas vezes, seja em qual universo Marvel for, vendo um jovem vítima de agressões verbais na escola ganhando poderes depois de ser picado por uma aranha de alguma forma modificada. E não só isso. As 12 páginas são tão icônicas que até mesmo as aparências de Peter Parker, tia May, tio Ben, de Flash Thompson (que não é nominado aqui) e do herói uniformizado pouco mudaram esse tempo todo.
A história em si é simples. Ou, pelo menos, ela é simples se vista pelos olhos calejados de quem já lê quadrinhos há muito tempo. Portanto, simples é reducionista aqui. Esse lado simplista vem do foco exclusivo na origem do super-herói. Não há vilões a não ser o próprio Peter Parker que, egoísta e amargurado pelo tipo de atenção negativa que atrai na escola, decide usar seus poderes para ganhos próprios, deixando seu tio ser morto exatamente pelo bandido que nem tenta parar, apesar de ter poderes mais do que suficientes para isso. Essa culpa o personagem carregaria para sempre em seus ombros e os leitores testemunhariam o nascimento de um super-herói fantasiado que poderia ser um amigo seu ou ele próprio.
Se olharmos para essa econômica narrativa a partir de uma perspectiva histórica, veremos uma das mais perfeitas – senão a mais perfeita – história de origem de um super-herói. Aos que estiverem revirando os olhos nesse momento, apenas prestem atenção ao que disse antes: se olharmos para trás desde o nascedouro dos quadrinhos de super-heróis como os conhecemos com Action Comics #1, poucas vezes veremos uma origem que passou tanto tempo quase que integralmente incólume apesar de todos os revisionismos e recontagens possíveis. E isso que faz esse trabalho de Lee e Ditko ser realmente atemporal e espetacular como sua criação.
E, claro, não deu outra: quando os números de venda de Amazing Fantasy #15 voltaram, a revista, que já havia sido cancelada, viu uma vertiginosa subida, o que levou a Marvel a, sete meses depois, trazer o Homem-Aranha de volta já em revista própria. E o resto é História.
Amazing Fantasy #15 (EUA, 1962)
Roteiro: Stan Lee
Arte: Steve Ditko
Capa: Jack Kirby (lápis), Steve Ditko (arte-final)
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: agosto de 1962
Páginas: 12 (história do Homem-Aranha), 26 (número total de páginas)
29 comentários
Boa observação sobre o uniforme do Aranha cobrir todo o seu corpo. Na verdade, estava pensando outro dia como é raro que um herói cubra todo seu rosto (que dirá o corpo todo). Quem vemos geralmente com rosto todo coberto são vilões – um bom argumento para as teorias de J. Jonah Jameson, não é? rsrs
Sim, sim. JJJ nunca teve muita dificuldade de enquadrar o Aranha como a ameaça número 1 de NY!
Abs,
Ritter.
É incrível pensar como o homem aranha foi fantástico, o arco de crescimento, a seriedade das histórias, a humanidade do personagem, seu elenco de apoio, mesmo que o quarteto fantástico tenha começado o aranha consolidou o arquetipo que os escritores mais usam pra criar personagens novos, afinal, é inegavél que a maioria dos heróis que surgem atualmente tem pararelos óbvios com o cavaleiro das teias. Lee e Ditko criaram algo enorme e eterno. O Aranha é o maior herói da história, mesmo que possa estar empatado com outros dois.
Sim, sim. QF tem uma origem e primeiras histórias bem peculiares que não serviram de modelo para usos posteriores. Mas o Aranha sim. Sua origem é arquetípica, uma versão aprimorada de origens mais antigas. É um ponto de equilíbrio perfeito, diria.
Abs,
Ritter.
Impressionante como uma história tão antiga envelheceu tão bem, bons tempos quando pessoas talentosas faziam hqs com carinho e respeito aos fãs, hoje homem-aranha está numa decadência tão grande que nem quero comentar, sugiro pra todos que querem conhecer o herói a evitar histórias dos anos 2000 pra cima salvo algumas poucas exceções, fujam se verem os nomes STRACZYNSKI ou DAN SLOTT na capa.
@robson_luz:disqus e o bacana é que é perfeitamente possível ver a franca evolução do Aranha ao longo dos anos 60 e 70, com histórias incrivelmente memoráveis! Teremos mais coisas dessas décadas em nosso especial, mas também traremos – para o mal ou para o bem – arcos do Straczynski e Slott…
Abs,
Ritter.
Comentei no outro post dessa semana algumas histórias interessantes a serem abordadas aqui, das histórias desses dois não espero nada acima de uma estrela kkkkk
Não podemos só escolher o que sabemos que é bom, não é mesmo? Assim, o panorama não fica completo! HAHAHAHAHAHAHA
Abs,
Ritter.
Straczyski fez um ótimo trabalho com o personagem, quem estragou tudo foi o quesada.
Onde vocês lêem hq’s? É online ou vocês compram mesmo?
No caso da Marvel, temos assinatura da Marvel Unlimited. No caso das demais, ou compramos físico ou via Comixology.
Abs,
Ritter.
Olá Ritter. Como funciona a assinatura Marvel unlimited? Tem versões em português? Tem material antigo ? Você a recomendaria para um fã saudosista dos tempos de rge e abril?
@joseaquiles:disqus , a assinatura da Marvel Unlimited pode ser feita mensalmente ou anualmente. Na segunda opção, claro, ela é mais barata proporcionalmente. No entanto, só tem material em inglês. E há a necessidade (até onde sei) de cartão de crédito internacional.
Se você ler inglês sem problemas, eu mais do que recomendo para fãs saudosistas, pois tem MUITO, mas MUITO mesmo material antigo, voltando até para a Era de Ouro da Marvel quando a Marvel nem era Marvel.
Abs,
Ritter.
Não precisa se explicar não: a origem do Homem-Aranha é sim a MELHOR ORIGEM DE HERÓI DE TODOS OS TEMPOS! A
He, he, he.
Relendo pela enésima vez essa história para fazer a crítica, comecei a pensar no quanto essa origem simplesmente NÃO mudou ao longo de 55 anos. Fiquei anotando em um caderno as origens de outros heróis famosos como Superman, Mulher-Maravilha, Homem de Ferro e, talvez com exceção do Batman, todos tiveram alterações grandes quando as origens foram recontadas. A do Aranha, Lee e Ditko conseguiram encapsular algo tão bom, MAS TÃO BOM em meras 12 páginas, que o Aranha nunca mudou de verdade. É muito bacana isso.
Abs,
Ritter.
Verdade,Ritter! A Marvel até tentou estragar a origem do herói com a péssima “Gênese” do John Byrne, mas não conseguiu.
Com certeza… Tentativas de estragar o que é perfeito não faltam!
Abs,
Ritter.
Joe Quesada é profissional nisso.
Pra mim o homem aranha é tão importante para os super heróis quanto o superman. O super praticamente inventou o gênero super-herói de forma que qualquer personagem possa remeter a ele e ainda ser independente. No caso do aranha, acho que é extremamente difícil dar uma identidade própria pra algum personagem que se assemelhe a ele conceitualmente, acho que um dos poucos que conseguiu foi o demolidor.
Sim, concordo, @joao_lucas_ribeiro_lopes:disqus ! E o Nova também carrega o espírito do Homem-Aranha em sua criação!
Abs,
Ritter.
Acho que o besouro azul, tanto ted kord como jaime reyes, também têm um pouco do espírito do aranha, acho inclusive que eles poderiam ser os equivalentes do teioso na dc.
Bem lembrado!
– Ritter.
Que crítica maravilhosa! A origem do Homem Aranha é mesmo genial. Algo muito divertido de se ler.
Vai ter especial igual ao lindo da Mulher-Maravilha?
@disqus_sezpmZcwTu:disqus , obrigado!
Olha, vai ter sim. Começamos ontem e só pararemos quando do lançamento de De Volta ao Lar em julho. Teremos publicações do Aranha todos os dias até lá!
Abs,
Ritter.
Vocês vão falar de caído entre os mortos? Ou a fase Stracinzky?! Essa última seria perfeita se não fosse o maldito do lesada.
Sim, tanto Caído entre os Mortos como pelo menos um arco do Straczynski estão em nossa lista. São mais de 30 artigos novos sobre o Aranha! É só aguardar!
Abs,
Ritter.
Com certeza vou cara.
Vocês são incríveis.
Obrigado pelo prestígio! Vocês leitores é que são incríveis!
Abs,
Ritter.