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Crítica | Homem com H

Colagem sensorial.

por Luiz Santiago
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Fazer um filme sobre Ney Matogrosso é encarar um desafio imenso. Não só pelo tamanho do artista, mas porque sua trajetória é feita de rupturas, reinvenções e excessos, e capturar tudo isso exige mais do que boa vontade. Nos últimos anos, o cinema brasileiro embarcou na onda das cinebiografias, embalado por uma tendência hollywoodiana. Nesse contexto, Homem com H, dirigido por Esmir Filho e baseado no livro Ney Matogrosso: A Biografia, de Julio Maria, tenta dar um passo além de filmes como Meu Nome é Gal, Nosso Sonho e Mamonas Assassinas, por exemplo. A proposta é clara: mergulhar na essência de um artista que nunca aceitou rótulos e sempre provocou. A visão sensorial de Esmir Filho, aliada à entrega divina de Jesuíta Barbosa, cria momentos de impacto real, onde o espírito de Ney parece pulsar na tela. Mas o filme tem dificuldade em articular as muitas fases da vida do cantor de forma orgânica. Falta uma estrutura que dê unidade à narrativa, e a trilha sonora — curiosamente discreta para um projeto sobre alguém tão musical — contribui pouco para amarrar as passagens.

Pontos fortes surgem já nos primeiros minutos, principalmente na abordagem estilística de Esmir Filho, mostrando uma fascinante conexão sensorial. A cena inicial apresenta Ney ainda criança, explorando uma mata em uma reserva militar, pés descalços, tocando terra e água — imagem que estabelece a ligação entre o artista e a natureza, elementos centrais em sua identidade. Esse momento deságua na performance de Homem de Neanderthal, composição de Luiz Carlos Sá que abre Água do Céu – Pássaro (1975), primeiro álbum solo após os Secos & Molhados. A escolha plástica traduz bem a ideia do “bicho-homem-indomável”, conceito poderoso que, no entanto, não encontra desenvolvimento consistente ao longo da narrativa. Mesmo com acertos na criação de imagens que evocam a força física e espiritual de Ney, o filme se organiza mais em quadros soltos do que em uma estrutura bem encadeada.

O roteiro acompanha uma trajetória de vida marcada desde os primeiros anos pelo preconceito, passando pelo sucesso explosivo com os Secos & Molhados, a consolidação da carreira solo e chegando a uma performance de 2024 de Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, de Sérgio Sampaio, já na fase octogenária do artista. Confesso que essa incursão final não me agradou. O recurso de cruzar passado e presente — tão bem executado em Meu Nome é Gal, por incrível que pareça — soa, aqui, bem menos eficaz, e tem total cara de encaixe preguiçoso. As transições entre os períodos da vida de Ney, com suas mudanças de cidade, de ofício e, sobretudo, de parceiros artísticos, são tratadas de maneira irregular (isso, quando esses parceiros chegam a ser mencionados), como se o filme se preocupasse mais em empilhar momentos do que criar um desenvolvimento a longo prazo e bem sequenciado para eles, como se espera de um bom filme.

Destacar a performance de Jesuíta Barbosa é inevitável, já que ele carrega o filme nas costas. Com presença magnética, o ator canaliza a alma de Ney Matogrosso sem recorrer a imitações caricatas, superando diálogos por vezes desconexos e elevando cenas que, sem sua intensidade, talvez passassem batido. O elenco como um todo cumpre bem sua função, mas é a entrega de Jesuíta que sustenta a conexão emocional com o público. Sua capacidade de incorporar a vivacidade de Ney, especialmente nos momentos de palco, dá vida às sequências mais marcantes. Trata-se de uma construção dramatúrgica que merece ser lembrada e que, mesmo com um filme que permanece na média, projeta o ator a um novo patamar de sua carreira.

Em vez de recorrer à vasta discografia de Ney para marcar suas diversas fases e impedir saltos estranhos, o diretor escolhe trabalhar com poucas faixas, como Homem de Neanderthal, O Vira, Bandido Corazón e a provocante Homem com H, de Antônio Barros, esta última, explorando a dualidade da persona de Ney e sua entrega à libido, que, em cenas posteriores, assume tons mais sombrios com a chegada do trauma da AIDS, enfrentado por ele ao lado de tantos amigos e amores que foram infectados. No conjunto, temas como a relação de Ney com a censura durante a ditadura, sua saída dos Secos & Molhados, a parceria com Cazuza e o relacionamento com Marco de Maria até recebem algum destaque, mas logo se diluem numa colagem apressada de episódios acompanhados por uma incômoda sensação de hesitação narrativa.

Homem com H é mais um exemplo que me faz repensar se o formato da cinebiografia ainda é o mais adequado para homenagear e representar artistas. Tenho cada vez mais a impressão de que filmes focados em eventos ou relações específicas (recortes precisos, em vez de uma tentativa de abarcar uma vida inteira) tendem a ser mais interessantes e menos problemáticos de construir. Quando comparado à televisão e suas séries, que oferecem mais tempo e liberdade para desenvolver a complexidade de uma trajetória pessoal, o cinema parece oferecer mais obstáculos. A não ser, claro, em casos de épicos dramatizados — e mesmo assim, é difícil imaginar um estúdio bancando um longa de mais de três horas sobre a vida de um artista. O impacto de Homem com H é agridoce: fica a sensação de que a história de Ney merecia uma abordagem mais fluída, mais musical, talvez em um formato que permitisse explorar sua essência sem as amarras de um filme convencional; mas, ao mesmo tempo, essa mesma abordagem consegue prender o espectador, seja pela energia retratada, seja pela altíssima qualidade dramatúrgica de seu protagonista. Seria uma pena que isso continuasse se perdendo em tentativas cinematográficas bem intencionadas que, simplesmente, não conseguem fazer milagres com a vida inteira de um grande artista e, inevitavelmente, pecará pelo excesso… ou pela falta.

Homem com H (Brasil, 2025)
Direção: Esmir Filho
Roteiro: Esmir Filho
Elenco: Jesuíta Barbosa, Caroline Abras, Rômulo Braga, Gabriela Coniutti, Céu, André Dale, Hermila Guedes, Bela Leindecker, Jeff Lyrio, Ney Matogrosso, Beto Matos, Bruno Montaleone, Jullio Reis, Bruno Parmera, Mauro Soares, Augusto Trainotti, Lara Tremouroux, Luiz Xavier, Pedro Zurawski
Duração: 129 min.

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