Uma das características mais marcantes da Marvel sempre foi o caráter humanista com que dirigiu boa parte de suas séries e personagens. A editora capitaneou algumas das mudanças mais interessantes na forma de como escrever roteiros para heróis badalados, adicionando emoções à flor da pele, temas polêmicos e vícios que atormentaram e forçaram esses campeões a olhar para o mundo e para suas vidas sob outro ângulo, o ponto de vista do homem comum, que pode ter momentos de heroísmo e ser capaz de grandes atos em um momento e, em outro, entrar em uma servidão que pode prostrá-lo, quebrá-lo e afastá-lo de todos a quem ama.
Em 1979, durante as edições #120 a 128 da Iron Man Vol.1, os roteiristas David Michelinie e Bob Layton, recém chegados à saga do Homem de Ferro, fizeram uma abordagem que não era muito comum nos quadrinhos mainstream da época: desconstruir um personagem expondo-o a uma fraqueza “simples e mortal”. Nada de grandes vilões espaciais ou impossibilidades exageradas. Tudo em O Demônio na Garrafa nos faz sentir em casa, como se estivéssemos lendo uma reportagem sensacionalista mas, mesmo assim, baseada em uma história de um grande empresário qualquer.
O primeiro passo que os autores deram foi cercar Tony Stark de problemas corporativos e ressaltar a sua imagem de playboy com grande ego, para quem a bebida era fácil e tida apenas como um divertimento. Nas primeiras edições, vemos que ele bebe quase glamourosamente, como qualquer homem muito rico que tem um bar em casa ou em seu edifício comercial e que dá alguns pequenos tragos sempre que precisa pensar em alguma coisa muito séria. Aqui, o problema para Stark está ligado à S.H.I.E.L.D., que tem intenções nada nobres em relação à Stark Industries e a Justin Hammer, que aparece pela primeira vez nos quadrinhos e, através de um elaborado plano, consegue manipular aos poucos a armadura do Vingador Dourado, um controle que terá um fim bastante trágico.
Não existe propriamente dito uma derrocada, uma declaração de falência ou algo do tipo. Mas a rapidez com que todos os problemas aparecem para o herói, o pouco — ou nenhum — tempo que ele tem para resolvê-los e, ainda, o peso de ser um super herói fazem com que Stark passe a “refletir” demais com o copo na mão, uma atitude que vemos de forma cada vez mais frequente nas páginas até que é declarado o vício dele. Tony Stark é um novo alcoólatra.
O roteiro aos poucos ganha o espaço internacional. Stark, James Rhodes (futuro Máquina de Combate) e Bethany Cabe são vistos em diferentes frentes de luta, sendo a mais importante delas, o evento com o Embaixador Sergei Kotzinin. Mas é claro de dentre tantas frentes de batalha, que começa com um desentendimento contra Namor e termina com Stark lutando contra ele mesmo, nem todas elas são boas e, a pior todas, está na edição #127. De imediato, gostaria de tirar a arte da jogada, porque o trabalho visual do arco inteiro é muito bom. Mas o roteiro coloca em cena nesta aventura uma avalanche de vilões B, um mais estúpido e ridículo que o outro e todos na folha de pagamento de Hammer, algo que, ao final, fica um pouco difícil de engolir.
A insanidade é tal, que o espectador fica agradecido quando os mocinhos vencem a batalha e Stark volta para seus próprios problemas. É nesta edição que vemos a famosa carta de demissão de Jarvis, que inicialmente tinha apenas rabiscos e, quando a revista foi publicada, havia, de fato, uma carta de demissão na mão de Tony, virada para o leitor, cuja autoria não era de Michelinie ou Layton. Descobriu-se depois que aquela era a verdadeira — e excelente! — carta de demissão de Dave Cockrum, com a palavra “Marvel” trocada por “Vingadores”. Eis a missiva:
Anthony Stark,
Venho por meio desta notificá-lo de que estou apresentando minha resignação de minha posição. Esta resignação é para efeito imediato.
Estou me demitindo porque esta não é mais a “grande família feliz”, com espírito de equipe, para a qual um dia adorei trabalhar. Durante o último ano, vi o moral dos Vingadores desintegrar-se até o ponto em que, em vez de serem uma equipe ou uma família, eles agora são uma grande coleção de indivíduos infelizes cozinhando em seu próprio guisado de raiva, ressentimento e frustração reprimidas. Vi muitos amigos meus aguentando silenciosamente tratamentos injustos, maliciosos ou vingativos.
Minhas queixas pessoais são relativamente modestas em comparação a algumas, mas eu não pretendo aguentar silenciosamente. Eu vi os Vingadores serem desativados, desabilitados e rearranjados. Estou absolutamente convencido e que isso foi feito com a ideia de “mostrar aos empregados quem é que manda”.
Não pretendo ficar para esperar o que virá a seguir.
Sinceramente,
Jarvis
A arte de todo o arco é digna de aplausos. À exceção das edições #122 e 124 (que possuem traços mais retos), quem assina os desenhos aqui é John Romita Jr., em um bom trabalho de caracterização para Stark e excelentes cenas de luta, especialmente no final — embora o roteiro aí seja completamente maluco, a arte captura bem todos os vilões estranhos que aparecem para ser saco de pancadas do Homem de Ferro. Também é válido citar os ótimos quadros de contexto histórico do protagonista (a edição desenhada por Carmine Infantino, por exemplo), retomando um pouco do passado, mostrando a sequência de armaduras e algumas ações de Tony desde que construiu a Mark I. Por último, as cores de paleta básica se destacam pelo inteligente uso de primárias e secundárias, alternando panos de fundo e ambientações, aplicação proposital para contraste dramático que serviu perfeitamente ao enredo.
Homem de Ferro: O Demônio na Garrafa é um arco clássico, histórico. A exposição de um homem poderoso como Stark aos efeitos nocivos do álcool foi uma lição importante e surtiu efeitos duradouros na linha do tempo do personagem e também foi uma porta abertura para as muitas descidas ao fundo do poço que veríamos acometer os heróis da Marvel de maneira bem mais frequente em toda a década seguinte.
O Demônio na Garrafa – O Incrível Homem de Ferro #120 a 128 (Iron Man Vol.1 #120 – 128) – EUA, março a novembro de 1979
No Brasil: Editora Salvat (A Coleção Oficial de Graphic Novels Marvel #1), 2014
Roteiro: David Michelinie, Bob Layton
Arte: John Romita Jr. (#120,121, 123, 125 a 128), Carmine Infantino (#122), Bob Layton , Bob McLeod, Bob Wiacek (#124)
Arte-final: Bob Layton
Cores: Ben Sean (#120, 122, 125 a 127), Carl Gafford (#121), Bob Sharen (#123, 124, 128)
Letras: John Costanza (#120 a 122, 126, 128), Irving Watanabe (#123), Jim Novak (#124, 127), Joe Rosen (#125)
Capas: Bob Layton, Dave Cockrum, John Romita, Jr.