Home FilmesCríticas Crítica | Homenagem à Obra de Philip Henry Gosse

Crítica | Homenagem à Obra de Philip Henry Gosse

por Michel Gutwilen
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O naturalista Philip Gosse, contemporâneo e amigo de Darwin, se viu diante de uma contradição. Como explicar o surgimento dos fósseis, que datam de centenas de milhares de anos, e ao mesmo tempo sustentar sua visão religiosa de que o Gênesis foi há 6 mil anos atrás? Partindo do pressuposto de que a Bíblia é a verdade, a solução do inglês foi criativa: Deus criou os fósseis retroativamente, concomitantemente ao surgimento da terra. Fascinado por essa já ultrapassada teoria (que também foi rejeitada na época pelos positivas e religiosos), e pela figura de Gosse, o cineasta argentino Pablo Martín Weber parte desse conceito como base para seu documentário que investiga tanto o homenageado em questão quanto conceitos modernos, como a inteligência artificial e a ação do Estado Islâmico na Síria.

Além de Gosse, vale traçar um paralelismo com um outro autor já se debruçou sobre a questão fóssil: o crítico e teórico de cinema André Bazin. Para ele, a imagem fotográfica é como um fóssil (ou “molde de uma máscara mortuária”). Segundo Dudley Andrew, que resumiu o pensamento baziniano, a imagem “não é o objeto real, mas seu desenho real e verificável, sua impressão digital. Somos atingidos psicologicamente por tais desenhos porque eles foram deixados pelo objeto que nos fazem lembrar”. Ou seja, se a pintura, por mais realista que seja, sempre nasce em si mesma, a imagem tem sua origem no que é real. Em uma boa analogia de Andrew, se nos depararmos com a pegada de um dinossauro em uma floresta, não sentiremos medo da pegada em si, mas porque ela nos lembra que um dinossauro real passou ali.

Explanados os dois conceitos, cabe ligá-los com o filme de Weber. Em um certo momento, ele parafraseia o diretor Chris Marker, que diz que “se as imagens do presente não mudam, mudaremos as do passado”. Atualmente, um programador se aproxima da visão que Gosse tinha de Deus, uma vez que ele pode retroativamente acrescentar elementos em uma imagem, como pássaros digitais em um céu. De mesmo modo, como mostrado em um trecho, inteligências artificiais criam rostos baseados em um banco de dados, sem nenhum correspectivo no mundo real. Como consequência, isso implica em um afastamento da visão baziniana, pois o progresso tecnológico está cada vez mais evidenciando que não necessariamente o que é reproduzido na imagem vem do mundo real. 

Assim sendo, como lidar com a ambiguidade dos arquivos audiovisuais no mundo moderno? Eles cada vez parecem perder mais o seu status de imagem e ganham contornos de algoritmos, um dado a ser interpretado. Tanto o avanço da tecnologia quanto a própria abundância das imagens em si levam a isso. Como um radar moderno voltado para o espaço, o que fazer para achar um sinal no meio de tanto ruído? Ou melhor, como achar/fazer Cinema no meio de tanta matéria-prima imagética já banalizada?

É justamente na direção desta zona cinzenta que o cineasta parece ir, sem saber exatamente que resultado irá chegar — e um tanto quanto ansioso para falar de diversos assuntos, flertando com o prolixo. Dando novas texturas às imagens das ruas de Córdoba (onde ele vive) no período ditatorial e das ações brutais do Estado Islâmico, uma nova interpretação daqueles eventos parece surgir. Por um lado, tratam-se de imagens que representam eventos reais, e portanto, carregam suas impressões. De outro lado, essas texturas digitais evidenciam o próprio status autoconsciente de arquivo audiovisual, uma vez que as imagens parecem carregar um peso, um certo lastro materializado. Logo, paradoxalmente, ao utilizar o algoritmo ao seu favor, Weber parece separar o sinal no meio de tantos ruídos, “fossilizando” as imagens com que ele trabalha, guardando para a posterioridade os vestígios de alguns dos eventos de violência que marcam a história da humanidade.

Como ele mesmo diz, o telescópio é um objeto que lhe fascina por permitir que se observe aquilo que os olhos não veem. Analogamente, é isso que ele faz com Homenagem à Obra de Philip Henry Gosse, ao criar um espaço imagético entre o tangível e o intangível, o invisível se faz visível. Até por isso, sua insistência em imagens de seres microscópicos resume muito dessa sua dialética e a intenção do seu fazer fílmico. Afinal, sabemos que aqueles imagens são seres vivos da natureza, mas eles são tão ampliados e coloridos que praticamente viram imagens abstratas. Por mais que dialogue diretamente com Gosse, Weber remete muito ao cinema de Jean Painlevé. Ambos entendem que o Cinema é uma possibilidade de explorar o desconhecido e fazer com que a imagem cinematográfica revele um outro lado da natureza. 

Homenagem à Obra de Philip Henry Gosse (Homaje a la obra de Philip Henry Gosse, 2020) — Argentina
Direção: Pablo Martín Weber
Duração: 22 mins

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