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Crítica | Huck

por Giba Hoffmann
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Contém spoilers referentes à minissérie!

Idealizada como a resposta de Mark Millar frente ao cinismo e ultraviolência predominantes no gênero super-heroico, a minissérie Huck faz parte das empreitadas mais recentes do Millarworld, que buscaram expandir seus horizontes para além do… cinismo e ultraviolência, marcas clássicas do estilo não apenas do selo mas do trabalho do autor como um todo. Tomado no panorama atual, em especial se levando em conta a tonalidade heroica tradicional e predominantemente otimista do Universo Cinematográfico Marvel, que em grande medida tem norteado as tendências do gênero, a inspiração de Millar parece advir ou de uma autocrítica velada ou de uma insatisfação mais pontual com a visão de Zack Snyder que tem regido o Universo Cinematográfico DC. Neste sentido, é impossível não visualizar, logo de cara e ao longo de todo o arco do personagem titular, a figura e mitologia dele próprio, o Superman.

Se a origem de Huck remonta, como já foi relatado pelo autor, a um suposto mal-estar experienciado após assistir a O Homem de Aço (sério, Millar? E Nêmesis, você já leu?) ou ao simples desejo de se arriscar em uma releitura minimalista do Superman da Era de Ouro, que transborda por toda a história, o fato é que Huck tem sucesso em destoar do quadrinho típico da Millarworld, desbravando horizontes pouco comuns ao selo, apresentando uma confiante, embora nem sempre bem executada, visão do super-heroismo focada em ideais radicalmente otimistas. O problema aqui gira em torno da execução do conceito, em específico se levarmos em conta que os autores, visando homenagear a essência do super-heroismo, trabalham em duas frentes necessariamente complementares: a temática da relação entre poder e altruísmo e a simplicidade dos conflitos. Se na primeira a história tem relativo sucesso, estabelecendo bem o personagem  principal e construindo uma gama de situações interessantes no cenário inicial, não se pode dizer o mesmo da segunda, uma vez que a trama chega sem fôlego ao seu ato final, desperdiçando o potencial levantado pela construção inicial e deixando prevalecer uma impressão de que algo de fundamental se perdeu no meio do caminho.

As duas primeiras edições envolvem o leitor no mundo de nosso super-heroi sem capa Huck, conduzindo-nos a conhecer o cenário da cidadezinha interiorana onde o frentista de posto vive. Mesmo dotado de força, agilidade e resistência sobre-humanas, além da capacidade de localizar quaisquer pessoas ou objetos com precisão, nosso protagonista leva uma vida bastante simples, realizando uma boa ação por dia, todos os dias. Estes atos variam de envergadura, indo desde assar um bolo para um vizinho até viajar até a África para salvar duzentas garotas sequestradas por terroristas. A inspiração nas raízes da mitologia do Superman encontra-se até mesmo no detalhe de que Huck se locomove sem o superpoder do vôo, que viria a ser uma das principais marcas do herói que, no entanto, originalmente se locomovia com super saltos. Além da clara homenagem, a escolha compõe bem com o estilo de Huck, ajudando a construir sua imagem de super-heroi (com o perdão do trocadilho) “pé no chão”. A troca da capa e fantasia coloridos pelo macacão também auxilia, e visualmente o personagem consegue facilmente se diferenciar do metahumano usual.

Por falar em visuais, a arte de Rafael Albuquerque se revela uma excelente escolha para a minissérie, contribuindo de forma central para a construção da narrativa. Se o desenhista apresenta um trabalho sólido nas cenas de ação, é nas cenas mais lentas e emotivas, focadas em desenvolvimento de personagem, dentre as quais encontram-se os momentos mais impactantes e bem construídos da trama, que o lápis tem a chance de realmente brilhar. As três primeiras edições da minissérie são praticamente perfeitas, e um exame mais detido revela que muito disso se deve ao bom uso da arte como recurso narrativo por si só. Albuquerque, cuja arte recebe a coloração do frequente colaborador Dave McCaig, apresenta um trabalho impecável nas cenas sem diálogo, como na sequência inicial em que Huck cruza uma longa distância, para então mergulhar e resgatar um colar de uma vizinha. É o tipo de cena que fala por si só, daquelas que dará muito trabalho na inevitável adaptação do quadrinho para o live-action, uma vez que a expressividade do traço, a duração e disposição da arte, somados à coloração aquarelada de McCaig emprestam à coisa toda um aspecto essencialmente quadrinesco, um tipo de charme que é difícil tirar da página pra colocar na tela, já que a beleza do movimento está ali, na sequência estática das imagens. As expressões faciais dos personagens também são muito bem realizadas, trabalhando tanto para contribuir com a construção da personalidade sui generis do protagonista, quanto para dar ao menos algum contorno ao elenco de apoio, que infelizmente não recebe tempo de página o suficiente para se desenvolver de forma satisfatória.

É aí que mora o grande ponto fraco de Huck. O conceito por trás do personagem titular é muito bem realizado, envolvendo o leitor com sua disposição simplista e seu altruísmo inabalável. A trama da minissérie, por outro lado, não consegue sustentar as temáticas levantadas pelas edições iniciais e que representam a parte realmente interessante do conceito, com a coisa toda degenerando em uma aventura apenas regular em seu desfecho. A obra é mais interessante pela construção do personagem de Huck do que pelo uso que faz dele, uma vez que se encontra rodeado de um elenco de apoio explorado de forma absurdamente rasa e inserido em uma trama simplista repleta de clichês desinspirados.

O otimismo de Huck não é estabelecido de outra forma que através de suas ações de bondade gratuita e nas belas cenas em que ele silenciosamente observa o bilhete com que foi encontrado quando abandonado, não demonstrando ressentimento por sua mãe mas gratidão pelo pedido escrito: “Por favor, o ame”. O personagem guarda um ar de distância que também é frequentemente interpretado pelos que o rodeiam como algum tipo de deficiência intelectual, e mais uma vez os momentos silenciosos e a expressividade da arte, mais do que os próprios diálogos e a narração, nos mostram na verdade um outro lado, uma sabedoria de vida que se assemelha a uma real humildade, justamente a do tipo que usualmente se confunde com ingenuidade. Huck é ingênuo não apenas no sentido em que não age a partir de nenhum referencial egoísta, mas principalmente na medida em que faz questão de agir a partir de um altruísmo que não requer motivação alguma.

Embora os paralelos entre Huck e Kal-El/Clark Kent sejam inúmeros, logo fica claro que o personagem opera com um tipo de sabedoria e modo de agir diferente daqueles tradicionalmente encontrados não apenas nas diferentes versões do homem de aço mas nos super-herois de maneira geral. Seu senso de dever e justiça é mais intuitivo do que ativamente assumido. Fazendo um paralelo com as figuras arturianas, ele se assemelha mais com Percival do que com Lancelot, seu heroísmo sendo fruto de uma postura que resiste à distinção entre ingenuidade e ingeniosidade. Ou então, indo um pouco além do mito arturiano, poderia se dizer que Huck é um tipo de Forrest Gump kryptoniano. Ele não se sente encarregado ou compelido a fazer o certo e, nesse sentido, é interessantíssimo na medida em que não se trata de um personagem que se define pelo dever de fazer o bem até o máximo de sua capacidade, mas pela escolha de fazer, com coração, aquilo de bom que está ao seu alcance. Os políticos detestátveis e agentes midiáticos oportunistas que passam a persegui-lo, típicas figuras das tramas de Millar, adquirem um caráter especialmente interessante em contraste com Huck, o que se prova um exercício interessante para o autor, cujos protagonistas costumam ser conhecidos pela atitude badass.

Frente tamanho potencial, é realmente uma pena constatar um marcado descompasso no roteiro, que deixa a desejar em inventividade e desenvolvimento básico das subtramas, cujos desfechos acabam ficando bastante aquém daquilo que é construído ao longo das ótimas três primeiras edições. A partir da chegada de Tom, que ao final da terceira edição se encontra com Huck no topo de um trem, revelando ser seu irmão perdido, a trama toma um rumo definitivamente menos interessante do que o que fora mostrado até então. Nada dos temas da exposição de Huck à mídia e os prenunciados efeitos catastróficos que isso poderia ter volta a ser retomado, e toda a situação acaba reduzida ao possibilitar que Huck fosse encontrado pela organização russa por trás do desaparecimento de sua mãe. Claro que os flashbacks da “Sra. Jones” (Anna Polina Marianna Kozar, para os íntimos), sendo submetida, 30 anos atrás, a experimentos em uma sinistra instalação soviética na Sibéria aparecem desde a segunda edição, inicialmente despertando a curiosidade do leitor a respeito de sua possível ligação com Huck. O problema é que a subtrama passa a roubar a cena, tomando lugar da narrativa focada em personagem em favor de uma aventura apática em um laboratório russo.

O vilão, Dr. Orlov é o típico cientista louco soviético ressentido com o que entende ser a irremediável decadência da Mãe Pátria. Desnecessário dizer que o personagem destoa em todos os níveis dos temas centrais tratados até então. Não que o antagonismo da trama devesse ficar obrigatoriamente com os políticos infernais, repórteres oportunistas ou mesmo com a falta de escrúpulos da opinião pública, como a temática e narrativa das edições iniciais parecia sinalizar que fosse o caso. Mas parece estranho que, entre estes dois clichês, Millar tenha optado pelo primeiro para desenvolver o personagem de Huck. Pode-se argumentar que a escolha do vilão retorcedor de bigode se trata também de uma homenagem ao heroísmo simplista dos quadrinhos clásssicos. Mas ainda sim, a ida para a Rússia representa um rompimento total com tudo que fora estabelecido na parte inicial da história. Literalmente trocam-se todos os personagens por Huck e sua mãe Anna, e a história deixa de ser sobre a pessoa única que ele e e passa a ser o típico conto do “heroi se opondo à ciência do mal que quer usar as pessoas como armas e que na verdade está ligada com a origem de seus próprios poderes”. Do Capitão América ao Kamen Rider, passando pelo Ultimate Homem-Aranha, a fórmula já provou sua eficácia no gênero e poderia inclusive dar as caras em uma possível continuação das aventuras de Huck, mas destoa totalmente da forma como a trama engata em sua primeira metade, não provando ser uma boa escolha para a história que estabelece o personagem.

Nada da interessante figura materna Sra. Taylor, da vizinha fofoqueira Diane ou do odioso governador Mitchell. O elenco de apoio, que já sofria de uma abordagem superficial, simplesmente desaparece. Apenas Huck e Anna tem um papel a desenvolver no desenrolar da trama. Não bastasse isso, nenhuma das situações pelas quais eles passam se apresenta como um real desafio para as capacidades de Huck ou ressoa minimamente com os temas levantados pelas primeiras edições. Literalmente, o que ocorre é que Huck se reúne com sua mãe, mas essa reunião não é explorada minimamente. Eles são presos, mas Huck consegue escapar arrebentando a parede reforçada da cela, com a ajuda do poder de sugestão da mãe. Os acontecimentos simplesmente não se assemelham a nenhum tipo de provação por parte de Huck, que escapa ileso e derrota os robôs (já que estamos tentando evitar pescoços quebrados, Millar resolveu ser cauteloso aqui – deve ser especialmente difícil para ele se segurar).

A escolha em não retratar nenhum tipo de violência explícita (isso mesmo, um quadrinho de Mark Millar sem uma gota de sangue sequer!) funciona bem para a tonalidade da minissérie de forma geral, mas parece fazer falta aqui, uma vez que não temos a impressão de que o uso do poder de sugestão de Anna em Huck tenha feito com que ele tivesse que se sacrificar de alguma forma para conseguir libertar os dois. Huck simplesmente quebra tudo e escapa, e vivem felizes para sempre. Não há conflito, não há reverberação da belíssima cena em que ele chora contemplando o bilhete, não há explicação pelo fato de Anna ter se mantido longe dele por tanto tempo – nem questionamento. Ele não se machuca, não é levado a superar nenhum tipo de limite, não passa por nenhum tipo de provação, nem mesmo a emocional de finalmente se encontrar com sua mãe, terminando a história exatamente da mesma forma que começou. Possibilidades interessantes que acabam jogadas pra escanteio, em favor de uma aventura padrão, que se torna palatável mais pela arte de Albuquerque do que por qualquer outra coisa. Embora seja um final bonito, fica a impressão de que falta um arco para o personagem principal.

Arriscando-se no extremo oposto de sua zona de conforto, Millar acerta na tonalidade e consegue mobilizar o leitor com uma história otimista, positiva e pontuada por bons momentos emocionais, do tipo que raramente se vê em seu trabalho. Mais do que isso, faz tudo isso sem sacrificar os bons momentos de ação e a escrita envolvente e diálogos de humor ácido que marcam seu estilo. Porém, o autor deixa a trama desandar em um ato final sem inspiração, lançando seu personagem original em uma série de situações não tão originais assim e que falham em ressoar com os pontos fortes de sua criação. Um pouco mais de cuidado com o desenvolvimento do roteiro poderiam ter dado a Huck a estreia que o personagem merecia. Mesmo assim, é um material que vale a pena ser conferido, uma leitura leve que nos momentos mais inspirados é realmente excelente, e no restante apresenta, no mínimo, um bom entretenimento despreocupado.

Huck
Nos EUA: Huck #01 – #06 (Novembro/2015 até Abril/2016)
No Brasil: Ainda não publicada
Roteiro: Mark Millar
Arte: Rafael Albuquerque
Cores: Dave McCaig
Capas: Rafael Albuquerque
Editoria: Nicole Boose
Editora: Image Comics
Páginas: 152 Páginas

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