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Crítica | I May Destroy You

por Kevin Rick
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Na minissérie I May Destroy You, nós acompanhamos a história da espontânea escritora Arabella tentando se reconstruir emocionalmente e profissionalmente após ser estuprada. Durante a série, a criadora/protagonista Michaela Coel constrói sua narrativa em torno do relativismo e a interpretação sobre diferentes formas de abuso e violação, especialmente em relação ao foco temático sexual. Dessa forma, a série tem como alicerce as áreas “cinzas” e indefinidas sobre permissão sexual. Não há espaço para certezas e absolutos. Só existe a ambiguidade.

Assim sendo, o show pode (e está) sendo classificado como uma obra sobre consentimento sexual. E, bem, não é uma afirmação exatamente errada… mas considero uma rotulação superficial do trabalho complexo de Michaela Coel. A artista parece estar mais interessada em relativizar e problematizar seus temas, do que necessariamente respondê-los ou até mesmo ter algum elemento (no caso, o consentimento) como fronte único da história. Aliás, I May Destroy You parece perseguir outro tipo de debate mais amplo: a linha tênue entre libertação e exploração na sociedade contemporânea, utilizando o consentimento sexual “apenas” como mais um elemento da sua proposta de discutir a formação de identidade da geração millenial.

É curioso como tantas obras de cinema/televisão, como deveriam, refletem os caminhos sociais atuais (representação, tecnologia, liberdade), mas poucas conseguem examinar isso de maneira aprofundada. Michaela busca perspectivas dos nossos parâmetros atuais. Nesse contexto de estar sempre discutindo tudo, a “libertação” é continuamente colocada em xeque com a maneira que é aplicada por seus personagens – sempre em reflexo da sociedade atual. Arabella usa drogas displicentemente, enquanto seu amigo Kwame (Paapa Essiedu) utiliza um aplicativo para sexo casual, e ambos se tornam vítimas de abuso sexual pela forma “errada” que empregam seus direitos e desejos.

Notem como eu coloquei a palavra errado entre aspas, pois a ideia de Michaela é justamente debater como a vítima, o agressor, seu círculo de amizade/familiar e a sociedade em si interpretam as situações criminosas. Arabella e Kwame definitivamente não têm culpa desses acontecimentos, mas eles não têm certeza disso. Eles se culpam, são julgados, e se tornam vilões de suas próprias histórias quando ambos contribuem com acontecimentos perturbadores para outras pessoas. Assim como os temas e as circunstâncias, os personagens principais em suas ações são discutíveis e complexos.

Ainda nessa toada, Michaela começa a diluir diferentes elementos de abuso físico e/ou psicológico na narrativa, como problemas paternais e amizade tóxica, sempre buscando a reflexão da responsabilidade como vítima e vilão em diferentes atitudes. A artista faz isso muito bem no encadeamento que pincela diferentes comportamentos de personagens que não existem dentro de paradigmas, como, por exemplo, Kwame que foi abusado, mas também se aproveita de uma moça como experimento sexual; ou então Zain (Karan Gill), um rapaz que poderia ser descrito como uma boa pessoa, mas que se aproveitou de Arabella; e assim por diante. A série é em seu cerne um retrato realista de comportamentos humanos; vilões em locais inesperados, pequenas atitudes ruins que desencadeiam grandes consequências e a nossa dificuldade em lidar com o trauma e a culpa.

Nesse grande campo de pontos de vistas, ângulos e porénsI May Destroy You é uma experiência das diferenças entre vontade e contato indesejado, analisa as múltiplas manifestações e abrangências do direito, e sempre busca borrar qualquer linha de certeza entre vítima e ofensor. Exatamente por essas questões intrincadas que a série é desconfortável e melindrosa de se assistir, pois tem um tom pragmático que confronta o espectador em ver um reflexo social no show, e não ser simpatizado ou emocionado pelas experiências em tela de maneira apelativa, mas sim de forma cruelmente verídica.

Além disso, Michaela é inteligente na sua construção narrativa cotidiana através de sutilezas do abuso. A banalização da dor de Arabella em reuniões de trabalho que não querem tocar no assunto do seu estupro, amigos de escola que protegem um jovem abusador enquanto uma menina sofre violência no background, ou então pequenos detalhes de relacionamentos tóxicos em frases machistas. Frente a isso, a artista britânica insere contornos de humor negro tipicamente britânicos, como piadas incômodas de estupro e alívios cômicos mórbidos com a constante desconfiança dos personagens, que proporcionam um estilo de ironia trágica à série.

Vinculado a isso, poucas vezes vi uma obra que trabalha nossos vícios tecnológicos com tanta facilidade, como a maneira que Arabella busca refúgio em uma foto após uma discussão ou então como personagens evitam conversas aflitivas mexendo em celulares perto de amigos. Existe uma evidenciação crítica na maneira que a protagonista vende sua imagem para corporações – aliás, tem um belo bloco que põe em foco a distribuição de poder online -, além do escapismo tecnológico posto em prática pelo elenco, seja um app de sexo, reflexões pseudo-filosóficas no Twitter ou discursos vazios de movimentos pela internet. Michaela se interessa sempre pelo que molda nossa forma de relacionamento e identidade atualmente, e, claro, tudo é aberto a interpretações.

Em um dado momento, alguém pergunta para Arabella se seu livro é sobre consentimento. Ela diz que achava que sim, mas não é. Para aqueles que não sabem, a série é baseada no abuso sexual que a própria Michaela Coel sofreu enquanto participava de outra série, chamada Chewing Gum, o que torna a obra ainda mais poderosa por seu caráter autobiográfico, revelando que o consentimento faz parte de I May Destroy You, mas o foco de Coel é mostrar nossa capacidade de reescrever histórias para tornar as experiências ruins suportáveis ​​ou colocar seus danos em algum uso. Ela (e sua personagem) não “evoluiu” por sua experiência traumática. Arabella apenas se torna diferente, menos alegre e espontânea, sem perucas e personalidade escandalosa, mas com um olhar diferente à vida. E nós, como espectadores, vemos o olhar de Michaela na série, e de Arabella no desfecho com múltiplos finais (vingança, redenção e surrealismo), que abrem, novamente, interpretações. Na realidade, só resta a reflexão da liberdade, responsabilidade e formação de identidade com o trauma em tela, para seus personagens e para o público.

I May Destroy You | EUA, 07 de junho a 14 de julho de 2020
Criação: Michaela Coel
Direção: Michaela Coel, Sam Miller
Roteiro: Michaela Coel
Elenco: Michaela Coel, Weruche Opia, Paapa Essiedu, Marouane Zotti, Stephen Wight, Adam James, Natalie Walter, Aml Ameen, Lara Rossi
Duração: 400 min. aprox. (doze episódios)

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