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Crítica | Icebox (2018)

por Gabriel Carvalho
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“Você não pode ser uma criança. Nesse momento em específico, você precisa crescer.”

Projeto Flórida conquistou o mundo com a sua visão de infância às margens da sociedade. Já Icebox, filme dirigido e escrito por Daniel Sawka, é uma espécie de antítese ao projeto de Sean Baker, não apenas subvertendo a infância, mas renegando a infância, em um ambiente em que ser criança é impossível, utópico demais. Aquela protagonista não teve que correr pela sua sobrevivência, vencer a si mesma para conquistar o seu refúgio, e não teve que, muito menos, desistir dos seus sonhos impossíveis para viver alguma coisa – não é para menos, a Disney estava ao seu lado -, enquanto Oscar (Anthony Gonzalez), em uma via muito mais entristecida, nem mesmo sabe quem é Taylor Swift, imagina saber o que são os sonhos fast-food criados pela empresa de animação. O confronto entre gangues, em Honduras, onde nasceu e cresceu, acabou o envolvendo diretamente nesse martírio sanguinário, terminando por obrigá-lo a adentrar um grupo criminosos, marcado eternamente com uma tatuagem em seu peito. O cineasta tem o cuidado de transformar tudo numa jornada de sacrifício e, já numa das primeiras cenas, consegue, senão completamente, pontualmente melodramar ao seu público. O muro precisa ser ultrapassado.

O cinema mapeia o mundo através das diferentes óticas de diferentes pessoas, sobre diferentes cenários e diferentes contextos. Aqui, o cerne da análise não é a necessidade por fronteiras ou não, não nasce de uma abrangência generalista dos imigrantes. Oscar é um personagem e não um arquétipo vago. A pessoalidade é compreendida pelo cineasta e manuseada competentemente pela sua narrativa, que pode perder o perigo em muitas situações, mas sempre o retorna. Hoje, comentar sobre uma criança que tenta atravessar ilegalmente uma fronteira e sentir pena desse menino chega a ser polêmico, quando a situação tem que ser vista com esse grau de intimidade independente da origem, porque o que acontece acontece e esse caso contado é um interessante objeto de fomentação à empatia, acima de tudo, por pessoas como Oscar. Daniel Sawka obviamente rejeita uma conclusão conciliadora, que pouco encerraria um retrato mais realista, apenas impulsionando uma fantasia improvável. O personagem também não é visto como um problema para a sociedade, mas uma pessoa que está fazendo o que está fazendo, quebrando códigos, quebrando barreiras, porque precisa – o necessário para o nosso crédito na premissa.

Com esse interesse pela aproximação do espectador, os personagens coadjuvantes ganham oportunidades consideráveis para surtirem algum impacto no público, como são os casos da jornalista – menos relevante -, do tímido tio e do divertido amigo – os dois últimos são importantíssimos e peças-chave desse entorno dramático. Um dos melhores momentos da obra, que realmente possui um roteiro interessante, é a cena de interação entre os garotos e as garotas, porque aquelas crianças são todas tornadas, momentaneamente, meras crianças, como se ainda houvesse espaço para qualquer descoberta de sexualidade em meio ao caos. Anthony Gonzales não está realmente mal em cena – algumas das conversas por telefone são maravilhosamente interpretadas -, mas o que não existe é uma ruptura da casca grossa que o ator apresenta, mais agressivo perante o mundo. O clímax, a exemplo, é acompanhado de um comportamento muito mais irritante, pertinente à infância, porém, não essa invertida infância representada, ao invés de emocionante. O cineasta, nesse caso específico e em outros, cambaleia, porque poderia recorrer a artifícios mais arrojados – até mesmo a trilha sonora tem um papel um pouco inexpressivo demais.

O ponto de vista apresentado assume uma origem mais externa, porque Sawka é descendente de suecos, até que descendente de imigrantes reais, no entanto, imigrantes completamente distintos desses aqui, que não enfrentaram as mesmas árduas provações. Mesmo assim, o resultado dessa visão, nascendo do cineasta, que teve que adentrar no sistema para observar o que estava acontecendo – quase como um jornalista -, é interessante, partindo de, em uma instância inicial, um convencimento ao mundo que aquele sistema de aprisionamento infantil é verdadeiro, não um boato, mas uma realidade a milhares de crianças pelos Estados Unidos. Como parte de dentro dos cofres estadunidenses, a produção também tem um caráter político muito poderoso, dada a era anti-imigratória que permeia o senso coletivo dos cidadãos americanos. A óbvia parcialidade – que não é demérito algum – aparece para ser notada mediante uma clara observação do que o longa quer que o espectador sinta pelo seu protagonista. A melancolia das celas, pautada sob uma cinematografia com cores mais frias, intensificando essa sensação de caixa de gelo, é notória por indicar esse inerente pesar, o que se configura como o objetivo do projeto – sobretudo a empatia.

Icebox não é uma obra para que defensores dos muros, das cercas e dos isolamentos necessariamente coloquem a mão na cabeça e percebam o quão estão equivocados – por inúmeras razões que não cabem ser pautadas aqui -, igualmente se é que estão verdadeiramente equivocados – vale a contra-argumentação pelo mero exercício argumentativo -, muito pelo contrário, sendo uma peça cinematográfica com o intuito de gerar a simpatia do espectador por pessoas que estão esperando alguma proteção surgir dos perigos internos às suas nações, por pessoas que estão sonhando com algo melhor, ansiando isso com muito fervor e querendo, com as suas garras, um depois do amanhã suficiente, mordendo os outros até chegar no muro, correndo desertos até chegar no muro, tornando toda essa saga uma jornada sobre infância desprotegida e não fronteiras desprotegidas. A obra ignora uma proposição panfletária, permitindo, porém, o espectador pensar sobre outros caminhos, caso existam – ou essa é apenas outra das desgraças mundanas que nunca terão fim, em um momento em que o amor ao próximo é coisa que morre quando a missa acaba? O muro mais doloroso é o que separa o protagonista de uma mera escola.

Icebox – EUA, 2018
Direção: Daniel Sawka
Roteiro: Daniel Sawka
Elenco: Anthony Gonzalez, Genesis Rodriguez, Johnny Ortiz, Dylan Kenin, Vincent Fuentes, Luis Bordonada
Duração: 86 min.

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