A poesia homérica, com sua rica tradição, continua a influenciar jovens leitores e plateias por meio de adaptações intersemióticas, que incluem quadrinhos, filmes e peças teatrais, refletindo a evolução da cultura popular em uma sociedade de consumo. A recente publicação Ilíada & Odisseia: Reflexões Sobre as Obras-Primas de Homero, escrita por um docente da Escola de Comunicação e Artes da USP, oferece uma abordagem humorada e contemporânea das obras clássicas, contextualizando os temas complexos da Ilíada e da Odisseia em exemplos ligados à cultura brasileira. Essa edição, prevista para abril de 2025, visa facilitar a compreensão dessas narrativas épicas por leitores habituados ao consumo de informações digitais e tecnológicas. Dividido em duas partes didáticas, o livro oferece Clóvis Conta e Explica a Ilíada, com 40 capítulos, e Clóvis Conta e Explica a Odisseia, com 21 capítulos, permitindo que os leitores se aprofundem nas histórias de forma lúdica e acessível. A capa projetada por Rafael Brum é simples, mas atrativa, complementando a proposta editorial de Vitor Donofrio, da Paladra Editorial, que valoriza a fluência na leitura por meio de uma diagramação e fontes que favorecem a compreensão. A obra se destaca, portanto, como uma ferramenta relevante para a educação e a divulgação da poesia homérica, ao mesmo tempo que se adapta às novas exigências de uma geração conectada e imersa na cultura digital.
A leitura é simples, introduz este universo literário de grandes ressonâncias a cultura ocidental, deixando, em linhas gerais, algumas lições sobre a cultura grega e os ensinamentos de ambos os clássicos. O que podemos ter como lição, durante a leitura, é que a Ilíada explora a busca pela glória (kleos) e o sacrifício dos heróis, mostrando que a fama pode ter um custo elevado. Na sociedade atual, essa busca pode ser observada na cultura das redes sociais, onde a imagem e a notoriedade frequentemente se sobrepõem ao bem-estar pessoal. Neste poema, Homero destaca o sofrimento humano e a destruição causados pela guerra. Isso nos leva a refletir sobre os conflitos contemporâneos, nos lembrando da necessidade de resolver disputas por meio do diálogo e da diplomacia, em vez da violência. Além disso, ambas as obras discutem o papel do destino (moira) e do livre arbítrio. A Odisseia, em particular, enfatiza a capacidade de Ulisses em de moldar seu próprio destino diante das adversidades. Isso nos leva a ponderar sobre como nossas escolhas impactam nossas vidas, mesmo em contextos predestinados.
A Odisseia narra a jornada de Odisseu em busca de seu lar e identidade. Essa busca é reflexiva da contínua procura por pertencimento e própria compreensão na sociedade moderna, onde muitos lutam para definir quem são em um mundo em rápida mudança. A figura de Odisseu, no livro tratado como Ulisses, simboliza a inteligência e a astúcia, destacando que a sabedoria é tão valiosa quanto a força física. Em nossa era, a tomada de decisões informadas e o pensamento crítico são essenciais para navegar em crises complexas. Em algumas aulas recentes, por exemplo, levei trechos do livro para destacar que líderes como Agamêmnon mostram que a autoridade não garante respeito ou lealdade. A liderança contemporânea deve ser construída sobre a empatia, respeito e integridade, refletindo a importância de uma liderança ética em contextos sociais e organizacionais. As obras de Homero sublinham a importância da narrativa e da memória. Hoje, a forma como contamos nossas histórias e preservamos nossa cultura impacta a identidade coletiva e a justiça social, influenciando o sentimento de comunidade e pertencimento. Tudo isso é apresentado com simplicidade por Clóvis de Barros Filho, mas com camadas latentes de elementos filosóficos por detrás da aparente estrutura simplória.
Além disso, o livro também delineia a influência divina na vida dos personagens e questiona nossa compreensão do papel da espiritualidade e do sagrado na vida contemporânea. A busca por significado e o questionamento da divindade também reverberam na moderna busca por espiritualidade e conexões mais profundas. A amizade também ganha destaque: a relação entre Aquiles e Pátroclo destaca a profundidade da amizade e a lealdade. Em um mundo interconectado, podemos debater a poesia homérica como uma possibilidade de construir e manter relacionamentos autênticos, algo mais relevante do que nunca, enfatizando a importância da solidariedade e da empatia. A extensa estrutura poética da Ilíada também nos lembra da transitoriedade da vida e da inevitabilidade da morte. A consciência da fragilidade da existência pode inspirar a valorização do presente, promovendo um modo de vida mais consciente e gratificante. São tópicos, caro leitor, que não apenas refletem as lições atemporais de Homero, mas também nos ressaltam a relevância contínua das suas obras na análise das complexidades da vida contemporânea, como o autor faz por aqui, de maneira eficiente, às vezes meio “boba”.
Ademais, alguns pontos merecem destaque, principalmente pela visão errônea que sem tem destes clássicos diante das constantes traduções para o contemporâneo. Tais tópicos estão, especificamente, na segunda parte, sobre a Odisseia. A história de Ulisses, um dos heróis da antiga Grécia retratado na Odisseia é marcada por elevados heroísmos e profundos dilemas existenciais que transcendem o âmbito bélico em que se insere. O episódio de seu exílio, particularmente durante os anos que se seguiram à Guerra de Tróia, pode ser interpretado não apenas como uma travessia física, mas também como uma metáfora crítica sobre a condição humana e a concepção de pertencimento. Durante a prolongada guerra de Tróia, que se estendeu por uma década, Ulisses, assim como seus compatriotas, enfrentou um tempo de perdas, conflitos e incertezas. Ao retorno para Ítaca, sua terra natal, os anos em que ficou preso no êxodo bélico podem ser vistos como um período de exílio forçado, mas também como uma representação do tempo desperdiçado, do anseio por um lar que parecia cada vez mais distante. Este exílio simboliza a desorientação do homem em relação ao seu lugar no mundo e na sociedade. Para os gregos, essa ideia de estar no “seu devido lugar” era extremamente significativa. A noção de que cada individuo tinha uma função e um espaço designado remetia à harmonia que deveria reger a pólis, a cidade-estado.
Isso não é destacado no livro em questão, mas mencionado como um detalhe importante. Nós, como leitores e curiosos, é que devemos sair em busca de maior compreensão sobre este trecho carregado de simbologia. O deslocamento de Ulisses, portanto, não é apenas uma questão geográfica, mas indica uma violação da ordem natural. Esses anos de luta e busca, por sua vez, podem ser tratados como uma sentença de morte metafórica, onde os guerreiros não apenas perdem o tempo, mas também a essência do que é viver plenamente, de acordo com os valores e ideais que lhes foram ensinados. O exílio de Ulisses é recheado de experiências formativas, mas também repleto de sofrimentos e desencantos. Ao longo de sua jornada, ele encontra diversos seres e culturas, de Circe a Calypso, que, embora diferentes, também compartilham da experiência de um desejo insaciável por liberdade e pertencimento. Enquanto o herói, em momentos de lucidez, reflete sobre sua situação, a narrativa revela um paradoxo: embora essas vivências o transformem e o moldem, elas também o afastam de sua essência, do significado de um lar. É inevitável pensar que para os gregos, esta perda de tempo na guerra também possui uma conotação crítica para a própria existência.
A guerra em Tróia, em termos mais amplos, pode ser vista como uma metáfora para os conflitos da vida que não resultam em crescimento ou evolução, mas em estagnação. O sofrimento e o exílio de Ulisses enfatizam a fragilidade das certezas humanas e a inevitabilidade do desvio do caminho que uma pessoa acredita ser o certo. Assim, o exílio de Ulisses não é somente um relato de aventuras; é uma meditação profunda sobre a perda, o tempo e o lugar do ser humano no universo. As experiências de Ulisses ressoam até hoje, sublinhando a relevância de refletirmos sobre onde estamos e para onde devemos ir, em busca de um sentido em nossos próprios “exílios”. A trajetória de Ulisses continua sendo um convite à autorreflexão sobre o preço da guerra e as escolhas que fazemos na busca pelo nosso verdadeiro lar.
Na Odisseia, a viagem de Ulisses ao Hades ocorre no livro 11, quando ele busca respostas sobre o seu futuro e sobre o destino de seus companheiros. Ao chegar ao Hades, Ulisses é recebido por almas de heróis e figuras mitológicas, como Aquiles e Agamêmnon. O Hades, na mitologia grega, não é um inferno no sentido cristão, mas sim um submundo onde as almas residem após a morte. O foco não é necessariamente no julgamento e punição, mas na tendência para o esquecimento e a ausência do brilho da vida. O que prevalece nesse espaço é uma sensação de apatia e um anseio de memórias perdidas, o que nos leva a entender que o inferno grego é mais relacionado à passagem do que à penalidade. Outro ponto interessante é a presença das sereias, frequentemente retratadas como belas criaturas marinhas com caudas de peixe, têm suas origens na mitologia grega, onde eram entendidas de maneira bastante diferente. Pulando dos contos antigos para as representações modernas, observamos uma metamorfose que distorceu a essência original desses seres mitológicos, especialmente à luz da obra do autor dinamarquês Hans Christian Andersen. Na antiga Grécia, as sereias eram frequentemente descritas como mulheres com corpos de pássaros, cujas vozes hipnotizantes tinham o poder de seduzir marinheiros, levando-os a um destino de perdição. Essa representação simbolizava, de maneira mais ampla, o dilema da atratividade e do perigo.
As mais conhecidas eram as sereias da Odisseia, de Homero, que encantavam Ulisses com seus cânticos, fazendo com que ele e seus companheiros quisessem se aproximar delas, apesar dos riscos que essa aproximação envolvia. A ideia de que a beleza pode ser fatal é uma temática recorrente na mitologia, e as sereias são um exemplo perfeito dessa dualidade. Na arte da Grécia antiga, as sereias também eram representadas de forma que refletia sua natureza híbrida. Vários vasos e relevos mostram essas criaturas com cabeças femininas e corpos de pássaros. Essa iconografia não só enfatizava sua origem avícola, mas também servia para ilustrar a distância entre o humano e o animal, a sedução e a morte. Essas representações contrastam fortemente com a imagem moderna da sereia, que, em muitos casos, é vista como uma figura puramente aquática, uma beldade com uma cauda de peixe e uma natureza benevolente. A transformação das sereias em criaturas marinhas pode ser atribuída a uma variedade de influências culturais ao longo do tempo. Durante a Idade Média, as histórias de sereias começaram a se tornar mais populares na Europa, mas diferiram da interpretação clássica. Estudiosos frequentemente sugerem que essa mudança deveu-se, em parte, à moralidade cristã emergente, que redefiniu as sereias como figuras que poderiam ser tanto sedutoras quanto benéficas.
Outro destaque que o livro nos apresenta em sua segunda parte é a frase “Conhece-te a ti mesmo”, uma máxima que remonta à Grécia Antiga e está presente no templo de Apolo, em Delfos. O oráculo de Delfos era um dos mais importantes da Grécia antiga, e a frase insculpida no templo de Apolo era um dos muitos ensinamentos que buscavam guiar os que consultavam o oráculo. Delfos era considerado o centro do mundo na mitologia grega e representava um espaço sagrado dedicado a Apolo, deus da razão, da profecia e da música. A expressão “Conhece-te a ti mesmo” era fundamental para a sabedoria que traçava um caminho entre a humanidade e o divino. A origem exata da frase é debatida, mas muitos acreditam que socráticos, como Sócrates, a utilizaram para instigar um senso de consciência e introspecção. Sócrates enfatizava a importância do questionamento interior e do entendimento de si mesmo como um passo crucial para a sabedoria. Assim, a frase se torna um pilar para o método socrático, onde entender e reconhecer as próprias limitações e virtudes é fundamental para o crescimento intelectual e moral. O significado desta frase é profundo é diverso. Em primeiro lugar, “Conhece-te a ti mesmo” sugere que o autoconhecimento é o caminho para a verdadeira sabedoria.
Ao nos conhecermos, compreendemos nossos desejos, medos, valores e convicções. Isso se traduz em uma vida mais consciente, onde nossas escolhas são alinhadas com o que realmente somos. Em segundo lugar, essa máxima também remete ao conceito de moderação. Conhecer-se envolve reconhecer as próprias fraquezas e limites, e, por consequência, adotar um comportamento equilibrado e responsável nas interações com o mundo. Os antigos gregos valorizavam a ideia do “sê moderado” como uma virtude essencial, e a consciência de si mesmo é um componente crucial na manutenção desse equilíbrio. Além disso, o autoconhecimento é frequentemente visto como um ponto de partida para o desenvolvimento moral e ético. Ao entendermos nossas inclinações e comportamentos, somos capazes de fazer escolhas mais éticas e justas em nossas vidas e na sociedade. A busca pelo autoconhecimento é, portanto, um caminho para o aprimoramento pessoal e coletivo. Na sociedade contemporânea, por exemplo, a frase “Conhece-te a ti mesmo” continua a se desdobrar. Em um mundo cada vez mais acelerado, caracterizado por constantes mudanças e desafios, muitas pessoas buscam um meio de se reconectar consigo mesmas. No geral, um livro “facilitador” para as novas gerações conheceram a importância destes clássicos enraizados no contemporâneo, publicação que funciona como uma eficiente bússola para aqueles que querem utilizá-lo como ponto de partida para leituras mais amplas sobre os tópicos apresentados superficialmente pelo autor.
Ilíada & Odisseia: Reflexões Sobre as Obras-Primas de Homero (Brasil, 2025)
Autoria: Clóvis de Barros Filho
Editora: Citadel
Páginas: 288
