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Crítica | Imperador Deus de Duna, de Frank Herbert

por Ritter Fan
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  • Leia, aqui, as críticas dos livros anteriores. Há spoilers somente das obras anteriores.

Duna, saga sci-fi cujos seis primeiros volumes foram escritos por Frank Herbert, não é fácil de ler. O universo futurista criado pelo autor é complexo, rico, vasto e muito diferente do que costumamos ver por aí, com muito dado para questões ambientais e religiosas. Além disso, os personagens – especialmente o da família Atreides – são distantes e frios, criando pouco rapport com o leitor que não se engajar de verdade na leitura. Se, porém, essas barreiras forem ultrapassadas, o primeiro volume muito provavelmente será visto como uma obra-prima e, mesmo que os posteriores jamais consigam chegar ao mesmo nível, o resultado final é um tour de force invejável e quase sem paralelo na literatura de ficção científica.

Imperador Deus de Duna, o quarto capítulo da saga, é, muito provavelmente, o que mais exigirá do leitor. Se Messias de Duna é quase que um epílogo para Duna que estabelece a figura messiânica de Paul Atreides e Filhos de Duna traz os herdeiros diretos de Paul – Leto II e Ghanima – para os holofotes, em uma trilogia inicial que lida com um espaço de tempo relativamente curto, com um “conversando” bem com o outro, Imperador Deus de Duna vem para estilhaçar essa cadência, algo que é feito já nas primeiras páginas em que notamos que há um salto temporal não de algumas décadas ou mesmo de algumas centenas de anos, mas sim de alguns milênios – 3.500 anos para ser exato – após o começo da transformação de Leto II em um verme da areia, momento crítico que fecha o volume anterior. Portanto, para todos os efeitos, esse volume disruptivo é um novo começo para a saga ou, na verdade, um interlúdio para uma nova trilogia (na verdade tetralogia) que Herbert infelizmente nunca terminou (apenas seu filho Brian, em parceria com Kevin J. Anderson, levou a saga ao fim, com resultados duvidosos). Partimos quase que da proverbial tábula rasa para a reconstrução desse universo à imagem desse Leto II radicalmente transformado que segue seu Caminho Dourado com a intenção de garantir a sobrevivência da raça humana.

Se o catapultamento radical para o futuro exige aclimatação por parte do leitor, já que quase todos os personagens que foram introduzidos nas três primeiras obras se foram, é a narrativa de Herbert que causa o maior estranhamento e a maior dificuldade de avanço pelas páginas, já que o livro tem estrutura bem diferente dos anteriores. Originalmente, o autor imaginou abordar esse recorte da vida do Imperador Deus de Duna – Leto II já em estágio bem avançado para tornar-se um verme da areia – em primeira pessoa e escreveu a primeira versão do livro quase que integralmente assim, com diálogos e pensamentos saindo da boca do protagonista. No entanto, ele mudou de ideia e basicamente reescreveu tudo em terceira pessoa, mas usou longos trechos de seu texto em primeira pessoa para funcionar como prólogos de seus capítulos. Quem já leu os volumes anteriores sabe que Herbert sempre fez uso de pequenos trechos de diversas obras desse seu universo (diários, relatórios, livros e outros) para abrir cada novo capítulo, mas sempre de maneira econômica. Aqui, porém, essas citações são muito mais do que apenas citações e tornam-se verdadeiros pré-capítulos com função narrativa direta para a história sendo contada, já que o que lemos é, em grande parte, trechos dos diários perdidos de Leto II.

E como se isso não bastasse, Imperador Deus de Duna é um livro quase que integralmente contemplativo. Há, apenas, três sequências breves de ação – a primeira envolvendo a fuga de Siona do palácio imperial, a segunda a partir do próprio Leto II enlouquecido em meio a cidade e, finalmente, a terceira e climática cena que encerra a narrativa – inseridas em intervalos cirurgicamente regulares, com o resto sendo, quase que exclusivamente, personagens interagindo com Leto II de forma a permitir que ele derrame sua filosofia e estratégia para nós leitores. Esses personagens, praticamente “desculpas” para permitir essa abordagem diferente de Herbert, ficam praticamente limitados a seu braço direito e confidente Moneo, da linhagem Atreides que é cuidadosamente cultivada e geneticamente monitorada pelo Imperador e Duncan Idaho, ou melhor, o mais recente gola (ou clone com as memórias da pessoa original até o momento de sua primeira morte) de Idaho, que é constantemente “encomendado” pelo Imperador aos Tleilaxu sempre que uma versão morre ou é morta, normalmente pelo próprio Leto II. Mais tarde, Siona, filha de Moneo, para quem o Imperador tem planos misteriosos, é trazida para a estrutura central, assim como a embaixadora ixiana Hwi Noree, criada e treinada para agradá-lo, esta entrando já em estágio bem avançado da obra.

São as interlocuções desses personagens com o desfigurado Leto II que funcionam como fios narrativos para que ele possa nos dar vislumbres do Caminho Dourado primeiro mencionado por Paul Atreides em Duna. Sem entrar em spoilers, entendemos que o referido caminho não é necessariamente o de paz, mas sim aquele menos gravoso e que permitiria algum tipo de sobrevivência para a raça humana, aqui entendida nas suas mais diferentes variações, incluindo os Dançarinos Faciais Tleilaxu e os tecnologicamente avançados (ao ponto de chegar próximo da heresia, considerando que a inteligência artificial foi proibida desde o Jihad Butleriano) Ixianos. Mas nada é abordado de maneira direta e didática. Muito ao contrário, Frank Herbert esmera-se desnecessariamente em escrever um texto consideravelmente hermético e por vezes muito repetitivo e cansativo.

Mesmo assim, é fascinante – ao mesmo tempo que repugnante – imaginar um humano em constante transformação em um ser gigantesco no formato de uma minhoca e o que isso pode significar para ele, especialmente considerando que o começo de sua metamorfose se dá com ele ainda com tenros nove anos de idade e levando em conta que ele nasceu “pré-nascido” com acesso a memórias ancestrais que chegam até ao nosso passado aqui na Terra. Aliás, mais do que em qualquer outro livro da série, Imperador Deus de Duna deixa claro que esse futuro imaginado por Herbert é o nosso futuro, por mais diferente e distante que ele possa parecer. Isso não é uma surpresa, mas a profusão de citações a personagens históricos (de nossa História) é sem precedentes na saga.

Mas isso não faz de Leto II um personagem simpático ou que crie uma conexão fácil com o leitor. Muito ao contrário até. Paul Atreides apesar de distante, pelo menos tinha uma construção heroica e uma jornada que seguia essa linha mais facilmente identificável. Leto II, já em Filhos de Duna, não era lá nenhuma simpatia e, como  “verme-em-treinamento”, é a antipatia em pessoa, a arrogância encarnada. Ou seja, Frank Herbert criou uma verdadeira corrida de obstáculos para tornar seu livro o menos palatável possível, sem dúvida triunfando nessa missão. A paciência, porém, gera alguns dividendos, com um trabalho angustiante no desenvolvimento de Duncan Idaho e de Leto II, o primeiro, “recém-nascido”, tendo que lidar com uma mudança completa no status quo da época em que morreu pela primeira vez e, ainda por cima, forçando-se a criar uma conexão com o Imperador Deus já que ele, afinal de contas, por mais improvável que seja, é ainda um Atreides.

Dentre todos os aspectos abordados ao longo da difícil narrativa, diversos elementos se destacam. O primeiro deles é a construção de um exército de elite composto exclusivamente de mulheres, as Oradoras Peixes, sob a premissa de que, em uma guerra, elas são muito mais eficientes e brutais ao mesmo tempo, resultado em menos, mas mais precisas mortes. Além disso, o sexo é outro instrumento de convencimento justamente para impedir guerras e elas são treinadas na arte da sedução. Outro elemento importante é a natureza do poder. Leto II tem plena consciência da mão de ferro com que rege o universo e o racional por trás é justamente a sobrevivência da raça humana, colocando-o em uma situação moralmente dúbia em que ele precisa infligir mortes para garantir a vida. Qual é o preço que se paga por isso? Seria esse o caminho correto mesmo a ser seguido?

E, finalmente, algo que me marcou ao longo da leitura foi a maneira como Herbert, usando o Imperador Deus como porta-voz, estabelece sua visão para o ditado de Lorde Acton que diz que “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Na visão de Leto II, não é exatamente isso que acontece, pois os corrompíveis é que são atraídos pelo poder absoluto, individualizando a responsabilidade em uma virada filosófica espetacular que merece reflexão e que desafia conceitos bem estabelecidos, pois simplesmente afirma que aquele que persegue o poder o faz porque quer manobrar esse poder para obter vantagens. Afasta-se a inocência. Afasta-se a ignorância. Afasta-se a influência do meio sobre a pessoa. E isso é aterrorizante se transplantarmos para o cenário político mundial ou para qualquer estrutura hierárquica de poder.

Imperador Deus de Duna é um verdadeiro desafio para o leitor, mesmo para aqueles que, como eu, adoraram os livros anteriores. Frank Herbert muda sua narrativa, imobiliza o protagonista (e o desfigura fisicamente), faz a ação propriamente dita quase que desaparecer por completo e nos pede que, assim como Moneo e Idaho, “escutemos” as lições de Leto II nesse mundo estranho, mas ao mesmo tempo familiar que ele cria em cima da pura bizarrice desse seu futuro distante.

Imperador Deus de Duna (God Emperor of Dune, EUA – 1981)
Autor: Frank Herbert
Editora original: Putnam Publishing
Datas de publicação: 1981
Editora no Brasil: Editora Aleph
Data de publicação no Brasil (Aleph – versão atual): outubro de 2017
Tradução (edição atual da Aleph): Christiane Almeida
Páginas (edição atual da Aleph): 512

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