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Crítica | Império da Luz

A viagem de culpa branca de Sam Mendes.

por Michel Gutwilen
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É possível dizer que existe a tentativa de três filmes dentro de Império da Luz, que obviamente dialogam (irregularmente) durante a narrativa, mas que talvez seja interessante destacá-los separadamente para tentar entender como o novo projeto de Sam Mendes fracassa no equilíbrio entre eles. Em uma primeira instância, este é um filme sobre Cinema, ao se passar dentro de um acompanhando a rotina de seus funcionários. Por outro lado, esse é um estudo psicológico de personagem, que busca acompanhar a trajetória problemática e irregular de sua protagonista Hillary, gerente do cinema, vivida por Olivia Colman. Por fim, este é um filme sociopolítico que traz o contexto do aumento da onda de supremacistas brancos na Inglaterra dos anos 80, que encontra no personagem de Stephen (Micheal Ward), interesse amoroso de Hilary, a personificação do homem negro que irá sofrer todos os racismos possíveis.

O primeiro curto-circuito entre esses sub-filmes está em como a história racial sempre parece subjugada ao estudo de personagem. O olhar oferecido por Mendes é sempre filtrado a partir da perspectiva de Hilary, sua protagonista branca, importando menos a maneira como os acontecimentos se dão objetivamente ao afetarem Stephen, e mais como um processo subjetivo de criação de empatia por ela. Mendes quer que vejamos a personagem seguir Stephen e ver ele sendo provocado na rua; que vejamos ela ficar incomodada com o cliente do cinema sendo racista com ele; que vejamos ela imobilizada diante da surra que ele leva dos supremacistas brancos. Todos esses acontecimentos vão implicar numa espécie de conscientização da personagem sobre o que é esse racismo que existe na Inglaterra que ela vive e ela era alienada até então (Stephen chega a citar que ela precisa ver mais televisão). Assim, parte da história de Império da Luz passa a funcionar como uma espécie de viagem de culpa branca, de assimilação da dor do outro e tentativa de fazer isso um processo sobre si — como o momento desastrado de Hilary no discurso de abertura de Carruagens de Fogo

Com exceção de Clint Eastwood, que talvez seja o único cineasta contemporâneo a tratar do tema racial pelo filtro da branquitude complexamente, esse tipo de empreitada como a de Sam Mendes costuma se mostra como um exercício constrangedor de se mostrar um aliado da causa nobre e evidenciar virtude, resultando em um produto simplório que só reproduz um diagnóstico conhecido décadas. Deste modo, Império da Luz se soma a um acervo de filmes feitos para mostrar ao público do “grande cinema” que o racismo ainda existe, mas sempre de maneira confortável (principalmente por adotar o ponto de vista da personagem branca, que observa distanciada a dor sofrida diretamente pelo negro). Neste sentido, é difícil pensar no que de fato Mendes acrescenta ao tema, perpetuando os mesmos clichês que já existem dentro dele há anos. Afinal, em 2022, não há algo mais cafona, datado e simplório enquanto olhar sobre os problemas e soluções da questão racial do que achar catártico momentos como um aperto de mão entre uma pessoa branca com uma negra, sempre enfatizados por Mendes a partir de um plano-detalhe. 

Involuntariamente, Império da Luz se torna quase como que uma paródia reveladora da própria miopia de seu diretor. O ápice dessa cafonice de Mendes, e que agora já entra em curto-circuito com o papel do Cinema no filme, é quando Olivia, após estar em choque com o espancamento sofrido por Stephen, decide ter uma catarse indo ao cinema. Veja que curioso: ao se deparar com a violência do mundo real, a protagonista decide se alienar mais ainda, como se a ficção pudesse ensinar para ela mais do que qualquer enfrentamento, como um porto seguro impenetrável para seus problemas. Seria essa então a visão de Mendes sobre o papel do Cinema? Uma bolha hermética diante da vida adulta? Um espaço apolítico? Se pensarmos que o grande momento climático do filme é uma invasão de extremistas brancos ao cinema trancado, seria como se estivesse representado neste gesto um grande ataque simbólico da realidade da vida que vai se forçando a fórceps para o espaço seguro e puro do cinema. 

Ao longo de todo o filme, a visão de Sam Mendes sobre o que de fato significa o Cinema nunca ultrapassa a superficialidade de um sentimento nostálgico com fim em si mesmo. Logo, o que ele nunca consegue justificar exatamente a nós é sobre que é essa nostalgia e por qual motivo? Ainda que um dos poucos pontos positivos de Império da Luz seja a maneira como Mendes consegue revelar os espaços invisíveis ao público da estrutura de um cinema e mostre o dia-a-dia dos seus funcionários, evidenciando, então, tanto um lado espacial quanto de material humano que dão destaque para aquilo que dá alma ao Cinema, o Cinema enquanto arte, por si só, pouco é abordado nesta equação, podendo essa narrativa se contextualizar em um outro ambiente igualmente. 

Além disso, por mais que o Cinema seja sim um espaço mágico e de acolhimento, soa no mínimo mal calculado que, em contato com a outra sub temática racial presente na história, seu olhar para essa estrutura seja tão isento de enxergar a política presente nele. Ou seja, por mais que exista um reconhecimento mínimo de que há relações de poder existentes nesta relação de trabalho, personificada na figura do chefe abusador, assim como da situação criada pelo roteiro do cliente racista, Mendes não faz nada para encarar como o próprio Cinema de fato é um lugar aburguesado majoritariamente para um público branco frequentar e consumir filmes feitos para pessoas brancas. Obviamente, porque a personagem de Olivia Colman é seu próprio alter ego. Por ironia, Império da Luz seria o tipo de filme seguro que passaria para a mesma audiência que frequenta o cinema do filme e seria aplaudido. 

Império da Luz (Empire of Light, 2022) — Reino Unido; EUA
Direção: Sam Mendes
Roteiro: Sam Mendes
Elenco: Olivia Colman, Micheal Ward, Toby Jones, Colin Firth, Tom Brooke, Tanya Moodie, Hannah Onslow, Crystal Clarke, Sara Stewart, Mark Ryan, Adrian McLoughlin, Spike Leighton, Mark Field, Ashleigh Reynolds, Mark Goldthorp, Dylan Blore, Eliza Glock, Tim Samuels
Duração: 119 mins.

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