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Crítica | Instinto – 1ª Temporada

por Leonardo Campos
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Compreender a primeira temporada da série Instinto requer muito mais que as comparações forçadas do universo de oito episódios com a infame jornada de Christian Grey em Cinquenta Tons de Cinza, paralelo que a crítica cultural preguiçosa e a área publicitária precisam traçar para conseguir vender, respectivamente, as suas reflexões e produtos. Ilações surgem de nossa bagagem cultural, sendo assim, cada pessoa faz as suas relações entre produções culturais, tendo em vista as suas possibilidades interpretativas. O problema surge quando é preciso se ancorar neste jogo de espelhos para fazer as suas análises ou divulgações. Instinto possui, obviamente, alguns momentos que nos permite olhar para o seu protagonista e ver o “marrento” Christian Grey em suas ações contratuais em prol do sexo sem amarras sentimentais, haja vista os seus traumas do passado e outras bobagens irritantes.

É algo perceptível logo em seu primeiro episódio. Um homem financeiramente poderoso, com segredos obscuros do passado, tendo nos fetiches sexuais uma maneira de dar vazão aos seus desejos. Mas depois desse panorama, a série vai além e consegue trabalhar muitos outros tópicos dramáticos que a tornam algo além da alcunha de “a nova versão” de “Cinquenta Tons”, etc. Antes de começar a empreitada como espectador curioso, tudo que li e ouvi referia-se ao processo de conexão com o universo infame da trilogia boba, inspirada nos livros igualmente sem valor literário de E. L. James. Assim, vamos adiante. Criada por Ramón Campos, Genna R. Neira e Tereza Fernandez-Valdés, Instinto é uma série espanhola em oito episódios, cheia de ganchos para uma segunda imersão, isto é, outra temporada, numa história cheia de mistérios, traições, traumas, relações familiares em crise e sexo, muito sexo, em todos os níveis possíveis.

Sob a direção de Carlos Souza e Roger Gual, realizadores guiados pelos roteiros escritos por Alberto Grandona, Almudena Ocaña e Aurora Gracia, somos apresentados ao universo de Marco (Mario Casas), um homem com graves problemas de sociabilidade, introvertido, mas muito rico, graças ao sucesso profissional alcançado na empresa em que exerce sociedade. Empresário do ramo da tecnologia automobilística, algo que o faz exalar a cada cena, o estereótipo do “super hétero”, isto é, aquele homem que não brinca, não flerta, nunca sorri, anda sempre com os membros superiores enrijecidos, faz sexo selvagemente em um clube onde todos os participantes optam pelo anonimato, bem ao estilo De Olhos Bem Fechados, aparentemente uma possível inspiração na seara visual, haja vista os traços da direção de fotografia e do design de produção nas cenas que se passam neste local, número volumoso, por sinal, pois o Sr. Mur sempre busca no sexo ardiloso a sua forma de escapar do estresse diário, principalmente diante dos acontecimentos que se estabelecem em sua vida ao longo dos episódios da temporada.

Ele é sócio da ALVA, juntamente com Diego (Jon Arias), um homem que vive um relacionamento morno com a sua esposa Barbara (Bruna Cusí), mulher que o ajudou a alavancar o nome da empresa. Tal histórico não o impede de trazer para a sua vida, a sensual e aparentemente perigosa Eva (Silvia Alonso), uma loira falta que não destruirá apenas o seu casamento, mas colocará as “garras” no sócio do seu amante. Não são poucas as investidas da jovem que profissionalmente, é uma mulher exímia em suas funções. O fato de suas necessidades dramáticas pessoais apontarem como falta de caráter dentro de um feixe específico de regras impostas pela sociedade não nos impede de a enxergar como uma pessoa esperta, antenada e inteligente. Além de tudo isso, ela adora sexo, mistura perfeita para causa tensão no relacionamento entre os sócios, afinal, se dinheiro e outras coisas nunca foram grandes problemas para os dois, será que uma loira sensual e amante da arte do sexo mudará esse panorama?

Quais são os reais interesses de Eva pelo local? Apenas sexo com o outro “chefe” ou há mais coisas que precisaremos desvendar? Algumas respostas são mais imediatas, outras provavelmente serão respondidas se houver uma nova temporada. O que sabemos é que essa “mulher-arquétipo” chegou para destruir o paraíso de muita gente. O seu nome já indica tudo. E as suas posturas também. Ir na sala do chefe e introduzir a caneta em suas partes intimas, masturbar-se sem preocupação com as possíveis câmeras na sala e outras posturas demonstram que Eva não é uma mulher fatal boba e há muito mais coisas por detrás de seu aparente plano de fazer sexo satisfatório com um homem mais atraente e viril que Diego. Barbara, neste caso, faz a esposa traída que tem o seu casamento destruído pelo marido que se encanta pelo charme dessa sereia que a todos envolve com o seu canto. Até mesmo Marco Mur vai se deixar levar, rapidamente, pelos truques da inescrupulosa funcionária.

Fora dessa dinâmica do ambiente de trabalho, Marco precisa lidar com José (Óscar Casas), seu irmão autista, jovem internado aos cuidados da melhor instituição especializada neste segmento do país onde moram. O seu grau de relação com o irmão é apenas obrigatório. Pagar o que precisa ser quitado, cumprir outras funções com a sua poderosa assinatura, etc. A presença do irmão traz à tona as lembranças de sua mãe, Laura (Lola Drieñas), parte de sua memória que retorna com tudo em sua vida, pois o reaparecimento da matriarca reacenderá tópicos não resolvidos, até mesmo em suas constantes sessões de terapia. Inicialmente interessada no dinheiro do filho, Laura se torna relativamente envolvida com as traumáticas memórias. São revelações em camadas até descobrirmos o real motivo do abandono dos filhos. Há, de fato, alguma motivação que possa ter explicações cabais para uma mãe abandonar os seus filhos?

Ao assistir a série, confesso que a resposta fica confusa, principalmente por estarmos numa sociedade de regras geralmente prontas diante de uma existência que prega ideais de maternidade. “Ser mãe é isso”, “ser mãe é aquilo”, etc. Instinto inclusive traz personagens que se questionam diante de tais tópicos constantemente. E nestes momentos, abre possibilidades para desconstrução de noções amplamente cristalizadas em nossa sociedade, além de ampliar os debates da série, rumo às discussões sobre obsessões, traumas não resolvidos em terapia, papeis definidos para homens e mulheres, etc. Quem traz algum equilíbrio entre os setores de relacionamentos do protagonista é Carol (Ingrid Garcia Jonsson), terapeuta responsável exclusivamente por José. Ela é quem conhece e acompanha o caso do garoto. Na briga de Marco, um irmão distante que do nada decide assumir a guarda do irmão, e sua mãe, uma mulher com passado traumático e histórico de abandono, a preocupação maior da especialista é a saúde e o desenvolvimento do jovem autista, personagem que nutre “certo” afeto pelo irmão que não consegue manifestar sentimentos em sua dificuldade hercúlea de socializar.

Diante do exposto, Marco Mur é um protagonista pressionado de todos os lados. No trabalho, começa a brigar com o sócio por causa da engenheira recém-contratada, mulher ambiciosa com mais interesses que apenas “focar em sua carreira”. Ele precisa lidar o irmão, agora mais presente em sua vida, além da mãe, memória distante, presente nas sessões com a Dra. Villegas (Elvira Mínguez), uma mulher que às vezes se emaranha nas teias da confusa vida de seu paciente. Carol, responsável por seu irmão, torna-se a sua principal aliada na vitória pela guarda de José, jovem que não possui o poder de tomar as suas próprias decisões. Será que ele conseguirá se despir de algumas manias e ceder diante da presença do irmão em sua casa, um lar que parece um grande palácio luxuoso, confortável e preenchido por roupas sofisticadas que Marco sequer consegue ceder para o irmão usar depois de uma situação específica do roteiro? Até quando o sexo no clube, levado aos extremos nos episódios finais, vai dar conta de preencher as suas ansiedades diárias? Será preciso mais uma temporada para saber. Mesmo com os seus ganchos, adianto que Instinto consegue fechar alguns arcos, o que não nos impede de vê-la e compreendê-la mesmo sem a possibilidade de continuidade.

Ademais, para narrar essa experiência, os realizadores contaram com a direção de fotografia de Jacobo Martínez e Ricardo de Gracia, dupla que entrega aos espectadores, enquadramentos e movimentos de câmera eficientes para a contemplação dos momentos dramáticos e das partes mais “quentes”, iluminadas cada uma de acordo com as suas perspectivas. Enquanto os ambientes familiares são amenos, com tons amadeirados e cores leves, o clube de sexo e o ambiente profissional por onde circulam os personagens são trabalhados com luzes e objetos que nos remetem ao tom de luxúria ideal diante dos temas abordados pela série. O design de produção de Victor Molero é deslumbrante e não deixa a série a desejar em nenhum dos oito episódios. Os cenários assinados por Susana Fernadéz são arquitetados de maneira familiar, tecnológica e luxuriosa, a depender do que a cena pede, adornado pela direção de arte também eficiente de Domingo Merino. Os figurinos de Pepe Reyes tornam as personagens adequadas aos seus perfis físicos, sociais e psicológicos e o único setor sem grande impacto é a condução sonora de Lucio Godoy, relativamente novelesca e com tom lacrimejante em algumas passagens sonoras intrometidas.

Instinto – 1ª Temporada — Espanha, 2019
Criador: Ramón Campos, Genna R. Neira e Tereza Fernandez-Valdés
Direção: Carlos Souza, Roger Gual
Roteiro: Alberto Grandona, Almudena Ocaña e Aurora Gracia
Elenco: Mario Casas, Óscar Casas,  Ingrid García Jonsson, Sylvia Alonso, Miryam Gallego, Jon Arias, Bruna Cusí, Elvira Mínguez, Lola Dueñas
Duração: 08 episódios (45 min. cada)

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