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Crítica | Instinto Selvagem, de Richard Osborne

A novelização do fenômeno cultural cinematográfico de 1992.

por Leonardo Campos
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A novelização de filmes é um fenômeno que se apresenta como uma ponte entre o mundo visual e o universo literário. Esse processo consiste na adaptação de roteiros de filmes para a forma de romance, permitindo que as histórias, personagens e universos criados para a tela grande ganhem novas dimensões por meio das palavras. Embora a prática não seja nova, seu impacto no entretenimento, nas vendas de livros e na exploração de narrativas transcende a simples reprodução de um roteiro, envolvendo elementos complexos de interpretação e criatividade. Historicamente, a novelização de filmes ganhou destaque nas décadas de 1970 e 1980, com narrativas que se tornaram best-sellers, como Star Wars, de George Lucas, clássico novelizado por Alan Dean Foster. Esse é um fenômeno que não apenas proporciona aos fãs uma nova forma de apreciar suas histórias favoritas, como também aproveitou a popularidade dos filmes para contextualização e venda de livros. A novelização funciona, deste modo, como uma estratégia de marketing, criando uma interseção entre as duas indústrias do entretenimento.

Um dos principais aspectos que tornam a novelização uma prática interessante é a possibilidade de aprofundamento psicológico dos personagens. Nos filmes, a narrativa, muitas vezes, é limitada pelo tempo, indo direto ao ponto e priorizando elementos visuais e sonoros. Em contraste, a literatura permite uma exploração mais rica dos pensamentos, emoções e motivações dos personagens. Além disso, a novelização pode também enriquecer o enredo com detalhes que não foram incluídos no filme. Muitas vezes, as limitações de tempo e orçamento obrigam os roteiristas a fazer cortes significativos. Por meio deste recurso, cenas cortadas podem ser incorporadas, novas subtramas podem ser adicionadas, e o contexto do universo pode ser mais bem desenvolvido. Ademais, é também digno de nota o papel do autor deste processo. Frequentemente, o trabalho é feito por escritores que podem não ter envolvimento na produção do filme original. Isso pode resultar em interpretações distintas e, por vezes, muito criativas das obras cinematográficas. Em algumas situações, esses autores trazem suas próprias vozes e estilos, resultando em obras que, embora baseadas em filmes, se destacam como criações literárias independentes. Essa possibilidade esbarra em questões éticas e de direitos autorais, mas abrir espaço para uma diversidade de interpretações é parte do charme desse formato.

Em Instinto Selvagem, novelizado por Richard Osborne e lançado pela editora Record aqui no Brasil, o resultado é interessante. Em linhas gerais, ao longo das 184 páginas do livro, contemplamos no suporte semiótico literário, as características que tornaram a icônica mulher fatal interpretada por Sharon Stone, por meio de diálogos e cenas que recontam tudo aquilo que visualizamos nas imagens da direção de fotografia de Jan de Bont, supervisionada pela direção firme de Paul Verhoeven. Catherine Trammell e sua persona se alicerçam na típica caracterização de uma femme fatale, um arquétipo que transcende gerações e que serve como uma lente através da qual podemos explorar temas de desejo, poder e manipulação nas narrativas cinematográficas. Também na escrita de Osborne, ela é apresentada como uma escritora de sucesso, cuja obra mais recente gira em torno do assassinato de um roqueiro, um pretexto que leva ao seu encontro com o detetive Nick Curran, no filme, interpretado por Michael Douglas. Desde o primeiro contato, Catherine se mostra não apenas sedutora, mas também extremamente inteligente e calculista. Este encontro não é puro acaso; ele se torna um jogo de sedução e poder onde Catherine desponta como a protagonista que, em vez de ser uma mera vítima, assume o controle de sua narrativa.

Uma das características mais notáveis da femme fatale é a sua sexualidade. Catherine, com sua beleza estonteante e seu comportamento provocativo, usa o corpo como uma arma. Sua sensualidade é uma extensão de sua vontade, permitindo-lhe manipular aqueles ao seu redor. No entanto, é importante compreender que essa sexualidade é apresentada de forma complexa. Embora ela utilize sua aparência e charme para atrair Nick, também se revela uma figura que defronta as normas sociais típicas da mulher nos anos 1990. Em um período em que o empoderamento feminino começava a tomar forma, Catherine se torna uma representação ambígua dessa luta. O jogo psicológico que se desenvolve entre Catherine e Nick é um dos aspectos mais fascinantes do filme e, no livro, também é desenvolvido corretamente. A personagem demonstra sagacidade e opulência em suas manipulações, indo além do corpo para demonstrar o quão a sua inteligência é um dos pontos altos de suas dimensões ficcionais. A dinâmica entre ambos ilustra a exploração do desejo e da paixão, mas também o medo e a desconfiança. Nick, atraído por Catherine, é consumido por um misto de fascínio e desespero, à medida que percebe a complexidade e a profundidade da personagem.

Catherine manipula as situações a seu favor, demonstrando seu domínio emocional e psicológico sobre os homens que a cercam. Essa interação se torna um campo de batalha onde o poder é constantemente renegociado, colocando a figura feminina em uma posição de força, desafiando o estereótipo do sexo frágil. Como já mencionado, um dos elementos mais fascinantes é que em várias ocasiões ao longo do livro, seu raciocínio rápido e habilidades de manipulação são evidentes, levando sempre a uma reviravolta que desafia as expectativas de Nick e do espectador. Este é um aspecto de seu caráter que coloca em pauta a crítica ao estereótipo de que as mulheres são passivas ou ingênuas em suas interações com os homens. Catherine não é apenas uma sedutora. Muito mais que isso, ela é uma acionista ativa na narrativa, controlando as direções que a história toma. Tal inteligência, aliada à sua sexualidade, enfatiza a ideia de que ela é uma mulher que utiliza de todas as ferramentas possíveis para alcançar o que deseja, rompendo com as barreiras impostas pela sociedade.

Para quem conhece o filme, a leitura da novelização pode soar como mais do mesmo, no entanto, a sua conferência é um interessante exercício de tradução, pois ao passo que lemos, vamos formando nossas próprias imagens na cabeça, não necessariamente aquelas apresentadas durante o clássico moderno de 1992. Em suma, caro leitor, a novelização de filmes é uma prática que transforma cinema em literatura, proporcionando uma nova perspectiva sobre histórias que já cativaram o público nas telonas. Essa transição não só enriquece a narrativa que é o ponto de partida, como também permite que a literatura alcance novos públicos, atraindo não apenas amantes de livros, mas também fãs de filmes. Com a evolução das mídias e a contínua interconexão entre diferentes formas de arte, é provável que a novelização continue a prosperar, gerando debate e incentivando a criatividade tanto na literatura quanto no cinema.

Hoje é uma prática mais incomum, mas ainda acontece.

Instinto Selvagem (Basic Instinct/Estados Unidos, 1992)
Autor: Richard Osborne
Editora: Record
Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos
Páginas: 184

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