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Crítica | Jackie (2016)

por Ritter Fan
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De certa forma, Jackie é um filme sobre a construção de uma lenda. Sim, é um olhar íntimo sobre a mais famosa Primeira Dama dos Estados Unidos, quiçá do mundo, mas é muito mais um testamento de como Jacqueline “Jackie” Kennedy erigiu sua vida e a de seu marido a um status quase mítico, algo refletido constantemente na fita pelas menções a Camelot como a terra idealizada em romances e poemas e cuja versão musical pontilha com constância toda a narrativa.

E isso diz muito de Jackie como mulher, como esposa, como viúva e também como um belíssimo drama do chileno Pablo Larraín (Neruda), que primeiro foi idealizado como uma minissérie para a HBO pelo roteirista Noah Oppenheim. Sem perder tempo, Larraín enquadra a narrativa como uma entrevista de Jackie (Natalie Portman) ao repórter Theodore H. White (que permanece sem nome na fita e é vivido por Billy Crudup), da revista Life. Curiosamente, o artigo final, que é escrito com base nesta entrevista, é curtíssimo e sem detalhes, apesar de belo, mas Oppenheim teve acesso, na verdade, à todas as anotações de White, que depositou o material completo perante a Biblioteca do Congresso após o falecimento de Jackie, em 1994.

O resultado é um rico retrato de uma Jackie abalada, mas forte, apenas alguns dias depois do trágico momento que testemunha, com alguns flashbacks não-lineares para três momentos chave para a condução da história: o famoso tour televisionado de Jackie pela Casa Branca no começo do mandato do marido, o assassinato e os momentos seguintes a ele até o enterro e uma conversa com um padre (o saudoso John Hurt, em um de seus últimos papéis). O foco é sempre na Primeira Dama, com uma câmera que tenta se aproximar fisicamente ao máximo da personagem, permitindo-nos um grau de intimidade quase desconcertante.

Essa impressão de veracidade e realismo é amplificada pela fenomenal fotografia de Stéphane Fontaine (Capitão Fantástico) que trabalha uma paleta de cores em tons pasteis que ao mesmo tempo reflete o estilo da época e os famosos figurinos de Jackie Kennedy (que, na verdade, se confundem com – ou, melhor, ajudaram a criar – o estilo da época). Além disso, o grão da película é propositalmente aparente, emprestando aquela impressão de obra documental antiga que muito bem se mistura com as reconstruções de época, especialmente as sequências do passeio pela Casa Branca e do cortejo fúnebre. Aliás, o design de produção é arrebatador em suas minúcias, em seu detalhismo, em sua grandiosidade íntima.

Mas não há fotografia e direção que substituam o quase assustador trabalho de atuação de Natalie Portman. Sem sua dedicação, sem seu mergulho na personagem, Jackie não seria especial como é. Sua composição, ajudada por maquiagem e penteados cirúrgicos, é realmente algo que dá gosto assistir, mas que fica melhor ainda se o espectador já tiver assistido alguns vídeos de Jackie Kennedy falando. Do sotaque à entonação, da forma hesitante e alquebrada como ela fala, Portman encarna a mais famosa das Primeiras Damas desaparecendo no papel no momento em que, não mais do que dois ou três minutos após o início do filme, o espectador se acostuma sonoramente à sua forma de falar bem característica. Testemunhamos, aqui, um daqueles raros momentos em que a atriz deixa de existir e a personagem floresce, com uma retratação poderosa de alguém em profunda dor, mas que mantém a compostura a todo momento, com raros momentos explosivos. Mas testemunhamos mais do que a Jackie afetada pelo trauma e tentando recompor sua vida dias após o assassinato. Vemos uma Jackie contrastada com ela mesma no início da presidência do marido e nunca verdadeiramente feliz e esfuziante, apesar de todas as famosas festas que comandou na Casa Branca.

Vemos uma mulher desde o início preocupada com o legado. O legado do marido. Seu próprio legado. Por momentos há uma certa vaidade, um certo egoísmo no que ela diz, mas o respeito pelo passado marcado pela forma como ela reforma seu novo lar e local de trabalho de JFK, trazendo de volta artefatos e objetos de presidentes anteriores é uma constante. E esse respeito se transmuta em preocupação sobre o que será do nome de seu marido – de seu nome – após a tragédia que lhe acomete. No momento em que a vemos, ainda extremamente abalada, interpelando o motorista e a enfermeira da ambulância que carrega o corpo de seu marido sobre os três presidentes americanos anteriores que haviam sido assassinados, com apenas Abraham Lincoln sendo reconhecido, entendemos como passado, presente e futuro se mesclam e como Jackie Kennedy molda seu próprio futuro e a memória de seu marido. Não, JFK não ganhou a Guerra Civil e nem libertou os escravos, mas seu enterro será como o de Lincoln. Camelot é criada ali, naquele momento em que Jackie se recusa a deixar que a tragédia seja apenas mais uma dentre várias.

Larraín mantém a câmera apontada para as feições de Portman o tempo todo. A atriz não tem saída e nem como se esconder. Cada momento, cada reação de sua Jackie é impiedosamente capturado pelo chileno, que exige o máximo da atriz. E ela, como disse, deixa de ser a atriz e passa a ser Jackie, mas sem deixar de ser Portman de alguma forma. Sozinha, perdida, mas resoluta. Mãe, esposa, mas, principalmente, um símbolo.

A forma como sentimos a presença deste símbolo tem muita conexão com a inusitada trilha sonora da violoncelista Mica Levi (conhecida como Micachu) em seu segundo longa (seu primeiro foi Sob a Pele) que é usada como mais um potente elemento para que Larraín crie toda a ambientação. Aqui, as cordas da compositora incomodam o espectador, retirando-o de sua zona de conforto e obrigando-o a confrontar as decisões – e indecisões – de uma Jackie ainda atordoada. Em muitos aspectos, a música, aqui, serve como uma das formas de se exteriorizar o que está na mente da protagonista, em um trabalho que é funcional para o filme e que, como tal, tem menos eficiência e fluidez como obra independente da película, o que de forma alguma deve ser interpretado como algo em detrimento ao trabalho de Micachu.

Considerando o foco integral em Jackie – o que ela pensa, o que ela quer, o que ela sofre -, alguns poucos momentos na projeção criam uma incômoda e desnecessária estranheza que quebra essa imersão no lado pessoal da personagem. A constante presença de Bobby Kennedy, vivido por Peter Sarsgaard, por vezes leva a narrativa para seu ponto-de-vista, trazendo o espectador momentaneamente para a superfície. É o que acontece, por exemplo, na sequência em que Bobby desliga a televisão e determina que ninguém deve contar a Jackie sobre o assassinato de Lee Harvey Oswald. Ela não viu isso acontecer e, portanto, seguindo a lógica da obra, não poderíamos ver essa cena. Há outros momentos ainda sob o enfoque de terceiros que, apesar de poucos e espaçados, acabam se revelando como escolhas equivocadas do roteiro de Oppenheim, talvez resquícios de personagens mais desenvolvidos na versão “série de TV” do filme.

Mas o que realmente importa e o que realmente fica é uma rica reconstrução de época que nos transporta a um dos mais traumatizantes momentos da história dos EUA conforme a visão de alguém que estava lá e cuja imagem e exemplo transcenderam em muito a tragédia. Jackie Kennedy recriou a mítica Camelot em meio à sua tristeza e diante de dificuldades extremas. E Natalie Portman, sob as lentes de Larraín, nos mostra como ela fez isso em cada detalhe em uma obra inesquecível como a lenda.

Jackie (Idem, EUA/Chile/França – 2016)
Direção: Pablo Larraín
Roteiro: Noah Oppenheim
Elenco: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, Billy Crudup, John Hurt,  Richard E. Grant, Caspar Phillipson, Beth Grant, John Carroll Lynch, Max Casella,  Sara Verhagen, Hélène Kuhn, Deborah Findlay, Corey Johnson
Duração: 100 min.

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