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Crítica | Jay Kelly

A máscara final de uma estrela em extinção.

por Kevin Rick
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Jay Kelly é um daqueles filmes que parecem existir em dois registros simultâneos: o drama íntimo de um homem tentando arrumar o próprio passado e, ao mesmo tempo, a crônica de um sistema, no caso Hollywood, uma máquina da celebridade que nunca deixa ninguém realmente envelhecer e que nunca permite que uma história termine. O filme, dirigido com grande sensibilidade por Noah Baumbach para os gestos mínimos e para a fragilidade emocional do seu protagonista, opera como uma espécie de antiepopeia: tudo nele se move em direção ao pequeno, ao ridículo, ao patético, que no fundo revela a dimensão humana que Jay passa a vida inteira tentando esconder atrás de papéis, prêmios e manchetes.

A obra só funciona plenamente por ser ancorada por alguém como George Clooney, não apenas pelo talento, mas pela própria aura histórica de estrela clássica que ele ainda carrega num cinema que já não produz mais “George Clooneys”. Ao interpretar Jay Kelly, um astro veterano em crise existencial, Clooney opera quase como se estivesse devolvendo ao público uma versão distorcida de sua própria persona: o charme cansado, o humor automático, o rosto que conhece as câmeras melhor do que conhece a própria intimidade. Essa camada de metalinguagem, às vezes explícita em tom quase satírico, às vezes apenas sentida, é o que dá densidade ao filme de modo menos óbvio do que suas críticas diretas à cultura da celebridade.

A narrativa é construída sobre a espiral de impulsos ruins de Jay, mas não com aquele cinismo fácil que muitos dramas sobre celebridades gostam de adotar. O filme entende que o problema não é só a vaidade, é a incapacidade trágica de Jay de viver qualquer coisa sem transformá-la em performance. No fundo, o filme está menos interessado em desmascarar Hollywood do que em entender o que acontece com um artista que passou a vida inteira representando tudo menos a si mesmo. Jay é um homem que se acostumou a existir como projeção. O humor melancólico que perpassa o filme surge justamente desse choque entre a persona pública e o indivíduo privado, entre o ator que todos veem e o homem que ninguém realmente conhece, inclusive ele próprio.

O episódio com Tim Galligan (Billy Crudup, excelente no papel diminuto), o amigo que o acusa de roubar o papel que o tornou famoso, parece um desvio inicial, mas é fundamental: ali o filme planta a semente do autoboicote. Jay bate em Tim porque, por trás da agressão, existe a ferida original, a consciência de que sua carreira inteira nasceu de uma mistura de oportunidade, privilégio, mentira e acaso. O fato de Tim transformar isso em um processo judicial apenas escancara como qualquer pequeno tropeço de Jay se converte em crise midiática.

O tom da direção tem uma delicadeza quase documental, seguido pelos diálogos rápidos e realistas de Baumbach em todas as cenas focadas em construir um bom drama humano. Gosto particularmente das interações com fãs, passageiros e funcionários, que são montadas com uma ironia triste: cada pessoa que o reconhece devolve a ele um reflexo deformado, caricaturas de quem Jay foi um dia, enquanto o homem real se sente elogiado, mas se dissolve na opinião pública bastante distante do que àqueles à sua volta sentem (só notarmos como a narrativa se constrói no afastamento gradual de todos próximos do protagonista).

E se Clooney é o espelho rachado desse mito, Adam Sandler é o grande coração emocional da obra. Interpretando Ron, o agente e amigo que orbitou Jay durante décadas, Sandler entrega uma performance surpreendentemente delicada: frágil, cansada, cheia de carinho acumulado e ressentimento engolido. É ele quem sustenta o tom mais íntimo e humano do filme, muito mais do que o próprio protagonista. Em muitos momentos, o filme parece até descobrir sua verdade através de Ron, como se Jay só pudesse existir dramaticamente quando refletido naquela figura que o conhece melhor do que qualquer familiar, e talvez melhor do que Jay conhece a si mesmo. O vínculo entre os dois é de dependência, mas também de amor mal resolvido, um tipo muito particular de afeto que só existe entre pessoas que sobreviveram a muitas crises juntas. 

O problema é que o filme não encontra um eixo emocional tão forte em outros núcleos, especialmente nos blocos familiares. A relação de Jay com a filha mais velha rende momentos mais sinceros, mais vivos, mais dolorosos, enquanto o arco com a filha mais nova carece de uma escrita tão afiada. Essas idas e vindas de personagens criam um filme deliberadamente fragmentado, quase episódico; às vezes essa estrutura funciona como um quadro emocional, mas em outras ela se torna dispersa, quebrando o ritmo e diminuindo o impacto de algumas reflexões.

Apesar disso, há uma coesão estética e tonal que merece destaque. A direção adota um registro híbrido, entre o humor observacional e o drama existencial, sem nunca abraçar totalmente nenhum dos dois. O resultado é um filme que se move num espaço intermediário, encantador em alguns trechos, levemente frustrante em outros, mas sempre honesto. Ele tenta rir da indústria, sim, mas suas críticas raramente são incisivas; o filme prefere gestos sutis a grandes provocações, o que o torna mais íntimo, ainda que menos contundente.

Visualmente, há uma elegância clássica, quase discreta: fotografia suave, composições limpas, um uso muito bonito de luz natural nas locações europeias, como se o mundo ao redor estivesse sempre mais sereno do que o protagonista consegue perceber. A montagem acompanha essa lógica: fluida, mas cheia de pequenas interrupções, espelhando a mente de alguém que vive mais no passado, nas recordações, nas falhas e nos arrependimentos do que no presente. Nesse sentido, gosto da montagem dos flashbacks que é fluida e que traz uma sensação de memória distorcida, como quem revisita o passado tentando descobrir onde tudo desandou, valendo destacar o recurso meta em algumas conversas entre personagens, como a longa caminhada pela floresta de Kelly com sua primogênita.

Se o filme não se torna excelente, é porque ele não consegue transformar sua metalinguagem em algo realmente profundo. Ele repete críticas usuais sobre Hollywood, o culto à personalidade, a superficialidade da fama, ainda que o faça com classe. E como drama, falta-lhe aquele momento de mergulho profundo, de revelação mais dolorosa, de confronto existencial realmente agudo. Parece que falta um “algo a mais” para elevar a potência emocional da trama.

No conjunto, é um filme muito bom, sólido, elegante, com dois grandes atores no centro: Clooney fazendo justamente o que só Clooney poderia fazer, e Sandler entregando uma performance inesperadamente sensível, talvez o melhor elemento da obra. É um filme sobre envelhecer, sobre remorso, sobre descobrir tarde demais que a vida não aceita “mais um take”, mas também sobre o deslumbro com a vida hollywoodiana, com todas as suas qualidades e percalços.

Jay Kelly – EUA, 2025
Direção: Noah Baumbach
Roteiro: Noah Baumbach, Emily Mortimer
Elenco: George Clooney, Adam Sandler, Laura Dern, Billy Crudup, Riley Keough, Grace Edwards, Stacy Keach, Jim Broadbent, Patrick Wilson, Eve Hewson, Greta Gerwig, Alba Rohrwacher, Josh Hamilton, Lenny Henry, Emily Mortimer, Sadie Sandler, Isla Fisher, Charlie Rowe, Louis Partridge
Duração: 132 min.

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