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Crítica | JCVD (2008)

Van Damme sendo Van Varenberg sendo Van Damme.

por Ritter Fan
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Filmes metalinguísticos autobiográficos de cineastas e atores têm a tendência de serem herméticos em relação ao biografado, só funcionando em um nível acima do básico para quem realmente os conhecem, além de também serem razoavelmente autoindulgentes. Não são qualidades problemáticas em si mesmas, mas elas exigem um esforço maior do que apenas tratar de seu assunto de maneira rasteira e apenas na base do “porque sim”. Para cada Oito e Meio, que nasceu de um bloqueio artístico para se tornar uma obra-prima, existem diversos outros que apenas usam sua premissa para trabalhar da maneira mais rasa possível o sujeito de seu estudo. Entre os dois extremos, há, claro, criações de diversos níveis, como o interessante Adaptação e a talvez não mais do que curiosa Trilogia Autobiográfica de Takeshi Kitano.

JCVD, enquanto obviamente nem consegue arranhar a excelência da obra de Federico Fellini – a comparação é até covarde, eu sei… – é uma bela surpresa por conseguir ser um filme de ação bastante competente, ao mesmo tempo em que serve de sessão de terapia profissional e pessoal para o astro belga Jean-Claude Van Damme que, de quebra, tem uma das poucas verdadeiras oportunidades para mostrar que é mais do que uma massa musculosa cheia de caretas e chutadora de bundas. E isso tudo sem parecer uma ode desenfreada ao ator, ainda que o longa trabalhe o culto à celebridade em meio ao trágico personagem central, o próprio Van Damme vivendo uma versão dele mesmo, quebrado financeiramente e que acabou de perder sua filha em uma batalha de custódia, que retorna para a Bélgica para um descanso somente para envolver-se em um assalto a uma agência postal, com a polícia achando que ele é o assaltante.

O franco-tunisiano Mabrouk El Mechri, em seu segundo longa, cria uma obra estilosa, com fotografia sépia nas tomadas fora da agência postal e esverdeada dentro, que logo a retira do lugar-comum e roga por atenção do espectador, ainda que essas escolhas estéticas não tenham grande função dentro da narrativa. Quase que integralmente falado em francês, aspecto que muito provavelmente foi fundamental para seu retumbante fracasso na bilheteria mundial, o filme começa com um excelente plano-sequência de ação com Van Damme no set de filmagens de seu mais recente filme muito genuinamente reclamando que ele não consegue fazer sequências assim, somente para ele repetir a dose mais para o final, com um monólogo de seis minutos de câmera parada. Não demora e o astro está na Bélgica e se envolve no referido assalto, com a narrativa mantendo o ponto de vista externo aos acontecimentos de forma a manter as dúvidas sobre a realidade do que aconteceu: seria mesmo Van Damme um assaltante ou há algo mais por trás?

Sem cerimônia, então, o diretor muda o ponto-de-vista narrativo para o próprio Van Damme e repisa com riqueza de detalhes aquilo que ele acabou de mostrar de maneira rápida e confusa do lado de fora da agência postal, com direito a flashbacks rápidos para a vida pessoal do ator – ou dessa versão do ator – que contextualizam seu estado de espírito. A ideia parece pinçada da clássica estrutura de Rashomon, mas sem o mesmo rigor técnico, claro (aqui estou eu de novo comparando JCVD com obras-primas de outros diretores…), pois, na superfície, El Mechri faz um “filme do Van Damme”, só que com Van Damme sendo Van Damme e abrindo espaço para que o ator reflita um pouco sobre sua carreira, algo que o plano-sequência inicial salienta e que os retornos para seu passado, especialmente uma conversa exasperada e frustrante com seu agente sobre “colocá-lo em um estúdio”, mesmo sem receber nada, para ele mostrar que sabe ser mais do que as pessoas acham que ele é, o que é recebido com ouvidos moucos e desdém e o que ele acaba provando ser – ou ter o potencial para ser – com o próprio JCVD.

Toda a ação dentro da agência postal, por mais confusa que ela seja, o que demonstra um pouco de descontrole por parte do diretor disfarçado de “estilo”, tem como função primordial desconstruir o herói de ação a que a figura de Van Damme é imediatamente associada. Para todos os efeitos, ele é um homem comum em quase tudo, menos em sua fama que, então, é usada pelos verdadeiros assaltantes como uma forma de manter a situação sob controle, e que é aplaudida por um público que torce por seu ídolo mesmo quando, ao que tudo indica, ele se bandeou para a vilania (o culto à celebridade que mencionei e que Oliver Stone trabalhou tão maravilhosamente bem em Assassinos por Natureza). Quando, então, finalmente o longa chega aos seis minutos de franco desabafo de Van Damme sobre suas escolhas de vida e carreira, tudo o que vemos é o homem por trás da fama e, por mais que talvez tenha havido ensaios e mais ensaios para que a tomada funcionasse como funciona, uma coisa fica clara: Van Damme passa autenticidade no que diz, passa algo mais do que apenas uma tentativa de fazer com que nós, espectadores, fiquemos com pena dele. Somos brindados com um momento catártico de Van Damme como Jean-Claude Camille François Van Varenberg, seu nome de batismo, um astro em decadência e perfeitamente ciente de sua decadência.

Van Damme tentaria ser Van Damme novamente em uma obra audiovisual, a série Jean-Claude Van Johnson infelizmente cancelada ao fim de sua primeira temporada, mas como autoparódia. JCVD, ao revés, é um filme de ação genuíno usado como uma desculpa para um drama real de um ator que há muito passara de seu auge, mesmo continuamente trabalhando em uma indústria que nunca o reconheceu de verdade. A melancolia que subjaz no longa é corajosa, diria, e resulta em uma obra superior em seu subgênero e, também, na vasta – mas repetitiva e com altos não tão altos e baixos muito baixos – filmografia de um ator-brucutu que sabe exatamente quem ele foi e ainda é, talvez por não conseguir se desvencilhar da rotulagem a que acabou sujeito.

JCVD (Idem – Bélgica/Luxemburgo/França, 2008)
Direção: Mabrouk El Mechri
Roteiro: Frédéric Bénudis, Mabrouk El Mechri, Christophe Turpin
Elenco: Jean-Claude Van Damme, Hervé Sogne, Jenny De Chez, François Damiens, Zinedine Soualem, Karim Belkhadra, Jean-François Wolff, Anne Paulicevich, Saskia Flanders, Dean Gregory, Kim Hermans, Steve Preston, Paul Rockenbrod, Alan Rossett, Jesse Joe Walsh, Isabelle de Hertogh, Liliane Becker, François Beukelaers
Duração: 97 min.

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