Em razão da morte de Jean-Luc Godard, um dos maiores cineastas da História, apresento aqui um breve comentário sobre dois curtas-metragens (Je Vous Salue, Sarajevo e Na Escuridão do Tempo) que às vezes passam batido em meio à imensidão de sua filmografia. Mas, ainda que não tanto comentados, talvez dois de seus melhores filmes.
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Je Vous Salue, Sarajevo
“Quando chegar a hora de fechar o livro,
eu não terei arrependimentos.
Vi tantos morrerem tão mal
e tantos viverem tão bem.”
Duas cabeças. Duas faces masculinas que olham para algum lugar fora do quadro. Dois rostos severos com toucas, com feições duras e levemente incomodadas. A música de Arvo Pärt soando estridente, excessivamente melancólica. Dentro do plano, a narração da voz grave, do próprio Jean-Luc Godard. Je Vous Salue, Sarajevo é um filme de apenas dois minutos, mas que em sua pouca duração propõe tensionar uma discussão que perpassa toda a história da humanidade. A desconstrução da imagem em micro-imagens, do total à parcela que, deslocada, perde seu sentido. É nesta violação do plano que Godard trabalha a oposição diametral entre cultura e arte.
Ambas diretamente relacionadas com o medo, são dois espectros laterais em relação à própria história. Uma buscando o controle, a dominação, ao passo que a outra procura sempre extrapolar qualquer linha limitadora. Uma investindo sempre sobre a aniquilação da outra. Em meio ao discurso de voz grave e à música dramática, Godard cata os restos daquele todo, numa tentativa última e esforçada de trazer um sentido à barbárie.
Quando finalmente vemos a imagem completa, compreendemos o espaço da violência e como é este espaço que irrompe do digladiar entre os dois lados. O que sobra, nesse ínterim, é a destruição de tudo supervisionada pelo cineasta, pelo olho por trás da câmera que não teme em finalizar. Afinal, com todas as contradições impostas pelo absurdo ao redor, não há porque ter medo. Uns morrerão mal, outros morrerão bem.
Je Vous Salue, Sarajevo – França, 1993
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Duração: 2min.
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Na Escuridão do Tempo
Godard sempre foi, sobretudo, um artista da imagem. Desde o início de sua carreira, até seus últimos longas, a imagem sempre esteve no centro de toda sua feitura, de todo seu processo. Trata-se de uma questão muito simples: o que se pode com o visual, até onde se vai com o visível. Na Escuridão do Tempo é um curta-metragem que, de certa forma, concatena toda essa preocupação em uma elaboração breve, mas extremamente bela.
Mesclando imagens de arquivo e filmes do próprio cineasta e de outros artistas, é uma obra que se debruça sobre o fim, sobre as últimas instâncias, seus resultados e suas consequências. Monta-se uma sequência sobre conceitos muito bem estabelecidos no imaginário humano (medo, beleza, amor etc.) e cria-se um efeito de sucessão derradeira, de tentativa última de observar tudo que se é possível extrair daquele visível em relação ao próprio existir. O que vemos não é uma mera sucessão de planos, cenas e sequências, mas sim um aglutinamento de tudo que perpassa a história do que se pode chamar humano – e de como esses resultados reverberam sempre algo que se possa ver.
De certo modo, é um curta que ressoa toda sua carreira até então, mesmo que seus filmes anteriores não preencham todo o espaço. Uma colagem visual, sonora e literária, uma tentativa de esboçar um sistema totalizante de influências para procurar o que se dizer quando não há mais nada a dizer. Quando tudo já foi dito. E, como o próprio Godard demonstra ao resgatar Wittgenstein, a solução só pode ser aquela escuridão completa do Universo, aquele espaço diluidor do tempo. “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.”
Na Escuridão do Tempo (Dans Le Noir Du Temps) – França, 2002
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Anne-Marie Miéville
Duração: 10min.
