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Crítica | Jezebel (1938)

por Luiz Santiago
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No primeiro Livro de Reis, parte do Antigo Testamento bíblico, somos apresentados a uma personagem muito interessante, Jezebel (também grafada como Jezabel), uma princesa e profetisa da Fenícia que se casou com Acabe, de Israel, como parte de uma aliança política entre as duas nações. Sendo seu esposo inepto politicamente e facilmente influenciável, não demorou muito para que Jezebel assumisse o controle de Israel, estendendo seu poder não só pelos canais políticos, mas também pela religião, tornando a nação um reino teocrático onde os deuses fenícios — dentre os quais, o mais famoso é Baal — passaram a ser cultuados.

Inteligente, estrategista e de poucos escrúpulos para conseguir o que queria (um outro episódio que a envolve, o da Vinha de Nabote, foi utilizado como base para o roteiro de Leviatã, 2014), Jezebel é utilizada como tema moral e ético para a construção de Julie Marsden, personagem de Bette Davis neste filme de William Wyler, lançado em 1938. O time de roteiristas se baseou na peça de Owen Davis para contar a história que se passa em Nova Orleans, no ano de 1852, em meio a uma aristocracia rural algodoeira vivendo em um local assolado por surtos de febre amarela. Há uma tonalidade épica adotada por William Wyler neste filme, colocando armadilhas para quase todos os personagens e ressaltando o modo de vida “civilizado mas nem tanto” daquela cidade, naquela época.

Bette Davis, que teve um breve romance com Wyler durante as filmagens de Jezebel (assim como um mais breve ainda romance com seu parceiro de cena, Henry Fonda), atribui ao diretor o fato de sua carreira ganhar um “novo momento” depois do longa, e diz que ele foi o primeiro cineasta a lhe dar atenção e o devido respeito, chamando-a para assistir aos copiões das filmagens do dia. Em uma dessas ocasiões, enquanto via intermináveis sequências em uma cena nas escadas, a atriz entendeu o motivo de tantas repetições exigidas por Wyler. A versão escolhida por ele era “a versão perfeita para a personagem“, segundo a atriz. Considerando os iniciais e finais problemas de relacionamento entre diretor e estrela, as filmagens de Jezebel ainda passaram pelo problema de atraso de alguns dias porque Henry Fonda precisou se afastar, dado o nascimento de sua filha, Jane Fonda, em 21 de dezembro de 1937. O atraso deixou Wyler impaciente e o ritmo de produção na fase final de Jezebel foi bastante exigente para todos, mas não de uma forma traumática. Alguns analistas acabam usando esse problema de bastidores para justificar as emperradas no roteiro e dissociação de cenas do meio para o final da fita, mas não vejo isso como uma justificativa válida. A obra realmente tem um roteiro falho e isso não seria diferente se o filme tivesse seguido a programação inicial.

Ocorre que nessa trama onde a personagem de Davis é o centro das atenções (já explorei aqui o seu caráter simbólico), temos dois caminhos que não se arranjam e que atrapalham um ao outro. Na primeira camada, temos o romance entre Julie e Preston, que passa de um relacionamento (de certa forma) abusivo da parte da jovem para com o noivo, e termina com um elemento de desamor, vingança, amargura e inveja. Claro que existem inúmeros clichês no decorrer de todas essas relações, mas a direção precisa de Wyler consegue minimizar a maior parte deles. No entanto, o diretor também adota caminhos pouco interessantes na passagem de uma cidade para outra e também na passagem do tempo, o que faz da parte final do filme um monumento de mediocridades onde apenas a atuação de Bette Davis nos prende. A montagem também não ajuda: existem fades demais aqui, e a maioria esmagadora deles utilizado como um mero capricho, o que torna a interação entre parte das sequência algo visualmente desagradável. Já a outra camada manca do roteiro se apresenta justamente quando o ritmo do filme padecia, sem fôlego. A camada política.

Passamos de amores com uma jovem orgulhosa, invejosa e vingativa para nuances políticas que discute sobre a escravidão (de maneira nada interessante), sobre os abolicionistas, sobre culturas locais e, por fim, cai no lago melodramático que, se por um lado volta a ter uma boa direção, perde grandiosamente no texto, que é pobre nos diálogos e raso no tipo de resolução que dá para cada um dos indivíduos, utilizando-se do sacrifício pessoal como uma mola para tornar os personagens mais fortes. O que não consegue. Novamente, apenas a grande atuação de Davis segura o filme em credibilidade e mesmo no vigor do que a própria sequência representa, ou seja, a tentativa de iniciar uma mudança, mesmo em um dos piores cenários onde isso pudesse acontecer.

Vencedor do Oscar de Melhor Atriz (Davis) e Atriz Coadjuvante (Fay Bainter), Jezebel é um dos icônicos longas dos anos 30, dando uma nova face ao tipo de personagem feminina a ser representado na tela, trazendo uma história mista de temas que abrem discussões interessantes, que é muitíssimo bem musicalizada (a trilha de Max Steiner é uma das poucas coisas que se sustentam em alta ao longo de toda a película) mas que tem um enredo e uma montagem falhos em muitos pontos, impedindo maior solidez na nossa visão final sobre a obra. O que fica na memória após a sessão é a soberba atuação de Davis e uma das cenas mais intensas e incômodas do cinema, a cena do baile com o vestido vermelho. O momento que define, de verdade, que tipo de pessoa é Jezebel. E o que ela pode causar a ela mesma e aos outros.

Jezebel (EUA, 1938)
Direção: William Wyler
Roteiro: Clements Ripley, Abem Finkel, John Huston, Robert Buckner, Louis F. Edelman (baseado na peça de Owen Davis)
Elenco: Bette Davis, Henry Fonda, George Brent, Margaret Lindsay, Donald Crisp, Fay Bainter, Richard Cromwell, Henry O’Neill, Spring Byington, John Litel, Gordon Oliver, Janet Shaw, Theresa Harris, Margaret Early, Irving Pichel
Duração: 104 min.

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