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Crítica | “João Carlos Assis Brasil, Ney Matogrosso, Wagner Tiso redescobrem A Floresta do Amazonas, de Villa-Lobos”

Um novo olhar para um clássico.

por Luiz Santiago
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Em 1987, três artistas de trajetórias distintas — João Carlos Assis Brasil, Ney Matogrosso e Wagner Tiso — se reuniram para reinterpretar A Floresta do Amazonas, de Heitor Villa-Lobos. O projeto, lançado pela Kuarup Discos, resultou numa gravação única, que propõe uma leitura contemporânea da suíte sinfônica composta originalmente em 1958 como trilha para o filme A Flor que Não Morreu (Green Mansions), estrelado por Audrey Hepburn e Anthony Perkins. Insatisfeito com a edição final feita para o cinema, Villa-Lobos reorganizou a trilha em uma obra autônoma, com 23 movimentos, orquestra completa, coro masculino e soprano solo. A Kuarup, fundada em 1977 por Mario de Aratanha e Airton Barbosa, já havia se destacado por seu trabalho de resgate e valorização da música brasileira, com ênfase na obra de Villa-Lobos. Ao acessar manuscritos inéditos da trilha original, Assis Brasil e Tiso propuseram uma versão moderna da suíte, respeitando sua estrutura sinfônica, mas incorporando elementos da MPB e da linguagem instrumental contemporânea. A gravação foi realizada na Sala Cecília Meireles e no Master Studios, no Rio de Janeiro.

A participação de Ney Matogrosso trouxe amplitude estética e visibilidade ao projeto. Em 1987, Ney já era reconhecido por sua extensão vocal, precisão técnica e trajetória artística marcada por uma variedade de repertórios. Em A Floresta do Amazonas, ele interpreta três canções com poemas de Dora Vasconcellos: Cair da Tarde, Canção de Amor e Melodia Sentimental. Sua abordagem é contida, direta e afinada com o espírito do disco, sem recorrer a excessos interpretativos, apenas seguindo aquilo que a atmosfera central exige. O álbum é dividido em três blocos. O primeiro, Suíte I – Na Floresta, inicia-se com Abertura, que recria sons da natureza por meio de instrumentos acústicos e eletrônicos, estabelecendo a atmosfera sensorial. Em seguida, Cair da Tarde apresenta Ney Matogrosso em registro grave, com emissão vocal precisa e articulação que expande sua voz como se fosse um grito para a natureza. A canção tem andamento lento, melodia estática e harmonia suspensa, reforçando a imagem do entardecer como metáfora da passagem do tempo. 

As faixas instrumentais seguintes — Exploração, Antecipando Jobim, Música de Rima, Dança I e Pássaros — alternam escrita sinfônica e improvisação ao piano, com destaque para o uso de escalas modais, texturas impressionistas e dinâmicas contrastantes. Canção de Amor traz Ney em interpretação emocionalmente contida, explorando o registro agudo com controle técnico e expressividade direta. O piano de Assis Brasil atua como base harmônica e contraponto melódico, sem sobrepor-se à voz. Veleiros, faixa instrumental de caráter lírico, apresenta melodia ampla, lembrando travessia e deslocamento. Dança II retoma o pulso rítmico da suíte com escrita marcada por pluralidade. Encerrando o bloco, Melodia Sentimental, uma das canções mais conhecidas de Villa-Lobos, ganha leitura introspectiva e camerística. O violoncelo de Jaques Morelenbaum assume papel melódico central, enquanto Ney articula cada verso com clareza e contenção. A percussão de Jurim Moreira atua com extrema discrição, pontuando a fluidez da linha vocal. A escrita harmônica da faixa antecipa procedimentos que seriam aprofundados por Tom Jobim em álbuns como Matita Perê (1973) e Urubu (1976), especialmente nas faixas de caráter sinfônico.

O segundo bloco, Improviso – Sobre um Fragmento da Página 5, representa o momento de maior liberdade formal. A partir de um trecho inédito, Assis Brasil e Wagner Tiso constroem um ciclo de cinco peças para dois pianos: Abertura/Tema, Improviso I, Improviso II, Volta ao Tema e Final. A estrutura não é linear e tem variações temáticas que se expandem e se retraem em espiral, sem seguir formas tradicionais. A escrita musical alterna blocos harmônicos densos, passagens modais e momentos de silêncio estruturado, criando uma escuta em constante suspensão. A introdução de sintetizadores — operados por Tiso — adiciona camadas de timbres sutis/etéreos e reverberações longas, que sugerem uma floresta percebida de dentro, como um estado psíquico. Embora esses recursos fossem incomuns em gravações sinfônicas brasileiras da época, aqui eles se integram com naturalidade à linguagem do projeto, funcionando como extensão de sons da escrita original. O resultado é uma síntese rara entre improvisação, escrita contemporânea e fidelidade estética, ampliando o universo de Villa-Lobos sem descaracterizá-lo.

O terceiro bloco, Suíte II – Além da Floresta, é composto majoritariamente por Wagner Tiso e propõe uma expansão simbólica da narrativa musical iniciada por Villa-Lobos. As faixas Prelúdio e Episódio da Lua, fundidas em uma única faixa no álbum, funcionam como ponte entre o bloco anterior e uma nova paisagem sonora. Ambas exploram texturas harmônicas abertas, com uso de sintetizadores e cordas em camadas, criando uma atmosfera de estabilização e transição. Em Piano e Orquestra, o piano de Assis Brasil assume papel central, dialogando com a orquestra em estrutura livre, com momentos de tensão harmônica e resolução dilatada. Tango, apesar do título, não adota a forma tradicional do gênero: trata-se de uma peça instrumental de andamento moderado, com acentuação rítmica sutil, mais próxima da música de câmara do que da dança. Adágio a la Ravel é uma homenagem estilística clara ao compositor francês, com encadeamentos impressionistas, uso de quartas paralelas e dinâmica progressiva. Em Intermezzo (Igarapés), peça para piano solo, a escrita é fluida e ondulante, com frases que imitam o curso sinuoso dos pequenos rios amazônicos. A mão esquerda desenha padrões repetitivos em registro grave, enquanto a mão direita desenvolve motivos melódicos leves e irregulares, sugerindo o fluxo natural da água.

A penúltima faixa, Tempestade, retoma temas anteriores com densidade orquestral crescente, alternando blocos rítmicos marcados e explosões tímbricas que evocam a força desestabilizadora da natureza. E então, Final encerra o ciclo com concisão e serenidade: uma peça curta, de caráter conclusivo, que dissolve os elementos anteriores em uma cadência simples e estável, como se a floresta, após o clímax, retornasse ao seu estado de silêncio e equilíbrio. O que essa gravação propõe não é reconstruir o passado, mas acordá-lo e vesti-lo com novas roupas. Ao reler A Floresta do Amazonas com liberdade criativa e precisão técnica, Assis Brasil, Tiso e Ney prestam tributo à obra de Villa-Lobos e a recolocam em circulação — não como monumento intocável, mas como matéria viva, aberta ao risco, ao presente, ao “som do agora”. O resultado é um álbum que escapa tanto da reverência paralisante quanto da intervenção gratuita: está em algum ponto ali no meio, onde o rigor formal e a imaginação artística se equilibram com raro senso de responsabilidade estética. Mais do que uma simples homenagem, é um gesto verdadeiramente criativo e, talvez por isso mesmo, permanece atual e impressionante até hoje.

Aumenta!: Canção de Amor
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João Carlos Assis Brasil, Ney Matogrosso, Wagner Tiso redescobrem A Floresta do Amazonas, de Villa-Lobos
Artista: João Carlos Assis Brasil, Ney Matogrosso e Wagner Tiso
País: Brasil
Lançamento: 1988 (gravado em 1987)
Gravadora: Kuarup Discos
Estilo: Música Clássica, MPB
Duração: 45 min.

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