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Crítica | Jogador Nº 1

por Ritter Fan
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As Aventuras de Tintim foi o último grande filme de aventura assinado por Steven Spielberg e é interessante notar que sua volta ao gênero se dê com o que basicamente é outra animação, já que os momentos live-action são tão poucos em Jogador Nº 1 que é provável que o filme seja qualificável na categoria específica de animação nas mais variadas premiações, como o Oscar. Mas essa coincidência não é nem de longe um problema, já que o diretor que encantou o mundo com suas obras infanto-juvenis dos anos 80 volta com toda a força não só para a referida década, como também para a mesma faixa de idade, criando mais uma obra que divertirá e empolgará dos pequenos aos adultos.

Baseado no romance homônimo de estreia de Ernest Cline, o filme se passa em 2045, quando o Oasis, um vasto mundo virtual criado por James Halliday (Mark Rylance, irreconhecível) e Ogden Morrow (Simon Pegg, este completamente reconhecível), inspirados muito claramente em Steve Jobs e Steve Wozniak, é a regra na sociedade mundial. As relações humanas existem mais ali do que no mundo real, algo que, convenhamos, não é um futuro tão irreconhecível e distante assim. Mas o catalisador da história, algo que é abordado nos primeiros dez minutos da obra em uma coleção de narrações bem estruturadas e didáticas que estabelecem as regras desse futuro distópico, é a morte de Halliday há cinco anos e a revelação de que o gênio criou uma complexa caçada a um easter-egg dentro do Oasis. O jogador que primeiro conseguisse as três chaves, herdaria a fortuna dele e também o próprio mundo virtual, o que estabelece uma corrida que também inclui a entidade vilanesca IOI, que usa de todos os métodos, legais ou não, para conseguir o prêmio.

No entanto, é o jovem Wade Watts, conhecido como Parzival (Tye Sheridan) dentro do ambiente virtual, que sai na frente de verdade, obtendo a primeira chave e deixando a IOI, comandada pelo inescrupuloso Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn especializando-se em papeis vilanescos), em modo de alerta máximo. Parzival, assim, tem que se juntar à seu amor platônico Art3mis (Olivia Cooke) e a seu melhor amigo Aech (Lena Waithe), além de Daito (Win Morisaki) e Sho (Philip Zhao), que ele só conhece virtualmente, para ter alguma chance de impedir que o OASIS caia nas mãos erradas.

Por si só, a premissa tanto do livro de Cline quanto do filme é muito interessante e automaticamente chamativa e acolhedora, especialmente porque esse universo virtual de Halliday é o supra-sumo das referências nostálgicas a tudo da cultura pop. Enquanto o romance se concentrava fortemente nos anos 80, a película toma diversas liberdades, ampliando seu escopo tanto para tornar o filme mais acessível aos mais jovens que talvez não façam ideia o que foi o Atari  2600, como para reduzir a dor de cabeça jurídica com a liberação de direitos de terceiros. A Warner, produtora aqui, sabiamente enxertou o máximo possível de obras próprias para driblar os direitos e, claro, gastar menos (não sei quanto a vocês, mas minhas três referências favoritas foram em relação a Toshiro MifuneExcalibur e Krull – quais foram as suas?).

Mas, além da premissa, Zack Penn e o próprio Ernest Cline, que trabalharam no roteiro, conseguiram fazer aquilo que adaptações devem realmente fazer: adaptar. Sim, parece óbvio, mas a falta de uma verdadeira adaptação, de efetiva transformação da linguagem literária para a linguagem cinematográfica é que faz naufragar um sem-número de filmes. Aqui, as regras do jogo, por assim dizer, se mantiveram intactas, de estruturas principais até as mensagens, mas Penn e Cline quase que completamente curaram os problemas do livro, resultando em um daqueles poucos filmes que conseguem ser bem melhores que o material fonte. Pela janela foram o didatismo exacerbado e as repetições infindáveis do romance, com menos desafios e mais celeridade permeando toda a ação. Da mesma maneira, o isolamento dos personagens é resolvido com uma introdução no mundo real muito mais rápida e dinâmica ainda que inverossímil, já que todos os cinco “mocinhos”, coincidentemente, viviam na mesma região (mas ok, vamos lá suspender a descrença mais do que o usual aqui).

Por outro lado, perde-se muito em desenvolvimento de personagens. Aech (nunca vou entender porque não traduziram o nome para Agá aqui no Brasil tanto no livro quanto no filme) e Art3mis não são muito mais do que figurantes de luxo e Daito e Sho são literalmente figurantes que entram na história tão abruptamente e desnecessariamente que suas respectivas presenças nunca realmente se conectam com o tecido narrativo maior. Eles são tão  importantes, por exemplo, quanto os milhares de indigentes virtuais que populam a gigantesca batalha final no Castelo Anorak. E Wade, o protagonista, é tão recortado em cartolina que ele não gera empatia alguma por mais que Tye  Sheridan tente se esforçar em todos os três ou quatro minutos que aparece fora da captura de performance.

Mas, claro, há um diferencial realmente importante aqui: Spielberg. Em Jogador Nº 1, ele volta a ser a criança mágica com uma câmera na mão que fora em E.T. – O Extraterrestre, Caçadores da Arca Perdida, Jurassic Park, dentre outros. É o diretor que aquece corações com pequenos detalhes, brincadeiras românticas e um controle de seu ofício como poucos de sua geração. Trabalhando em um mundo virtual sem rédeas, Spielberg cria dois mundos muito bem definidos, com a ajuda de seu parceiro parceiro de longa data Janusz Kaminski (Minority Report, O Resgate do Soldado Ryan, A Lista de Schindler, Cavalo de Guerra, dentre outros) que usa uma fotografia quase sem cores para retratar o mundo real devastado pela explosão populacional e outra que é uma explosão de cores – sempre tendentes, porém, ao azul, talvez em um sinal da melancolia de Halliday). A manobra é, em si, um clichê óbvio, mas a grande verdade é que esse clichê, em mãos menos hábeis, cairia na oposição simples entre o “claro” e o “escuro” e não é isso que Spielberg e Kaminski fazem, já que eles estabelecem nuances tanto na degradação quanto nos nostálgicos mundos falsos da super-internet.

Até mesmo o pouco tempo de “mundo real” que o elenco têm é bem aproveitado por Spielberg, que consegue tirar o máximo da limitada equipe jovem, mas um fascinante Halliday e um eficiente vilão, resvalando no divertido histrionismo, por parte de Mendelsohn. Todavia, acho que pela primeira vez que consigo me lembrar, Spielberg se rende à montagem esquizofrênica “moderna” das sequências de ação, o que acaba detraindo da experiência. E isso vem desde o começo, com a corrida maluca cuja montagem, porém, tem função dentro da história para nos apresentar a esse universo completamente exagerado. No entanto, a estratégia, comanda pelos editores Sarah Broshar e Michael Kahn, acaba sendo repetida mais para a frente na perseguição no mundo real mais para o final e especialmente na longa (demais) sequência de combate no Castelo Anorak em que tudo acontece ao mesmo tempo agora e, no final das contas, nada é discernível além do “olha lá as Tartarugas Ninja” e coisas assim. O frenesi, ainda bem, fica em segundo plano na mais do que inspirada sequência em um certo hotel perdido nas montanhas geladas, sem dúvida um dos mais inspirados momentos do filme.

Outra coisa que Spielberg sempre fez muito bem e repete aqui é usar efeitos especiais. Em uma fita que depende quase que 100% de CGI, é uma felicidade ver que a qualidade, nesse quesito, é de se tirar o chapéu. Tanto os personagens virtuais quanto a ambientação – o design de produção é tão bom quanto! – têm vida e exalam verossimilhança dentro das regras estabelecidas na produção. Mesmo no exagero extremo da batalha final, vê-se um cuidado em criar peso e massa para as naves, robôs e demais criaturas. Além disso, em uma escolha inesperada, mas exata, Alan Silvestri faz sua primeira trilha para um filme de Spielberg e, trabalhando notas musicais que emulam as de outros filmes (como de De Volta para o Futuro, dele próprio, e, mais claramente, lógico, de O Iluminado), ele cria um conjunto harmônico belíssimo que, porém, durante a projeção, pouco se diferencia, o que faz valer a espera dos créditos para ouvir o tema principal em toda sua glória enquanto rolam os nomes pela telona (não há cena pós-créditos).

Mesmo com seus problemas e uma duração que não precisava chegar a tanto, Jogador Nº 1 é uma diversão genuína que lembra o Spielberg brincalhão de outrora, mas sem o mesmo brilho, sem aquele “quê” a mais que criava clássicos instantâneos. É uma película que mostra que o diretor nunca perdeu sua verve pela aventura infanto-juvenil e que tem muito a ensinar ainda a seus colegas mais jovens de profissão. O perigo é ele ser contaminado pelos maneirismos dos que deveriam aprender com ele…

Jogador Nº 1 (Ready Player One, EUA – 2018)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Zak Penn, Ernest Cline (baseado em romance de Ernest Cline)
Elenco: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Waithe, T.J. Miller, Simon Pegg, Mark Rylance, Philip Zhao, Win Morisaki, Hannah John-Kamen, Ralph Ineson, Susan Lynch, Clare Higgins
Duração: 140 min.

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