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Crítica | Jogo de Cena

por Laisa Lima
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Se existe algo discutível, isto é a noção de uma realidade ficcional. O suposto vácuo entre o real e a ficção é incontestável aos olhos dos que consideram um filme explicitamente simulado, o oposto de uma obra documental. Sim, este gênero é majoritariamente pautado no que já existe de fato, mas para surpresa de alguns, o mesmo pode conter resquícios de fantasia. Espantosamente, o cinema, desde seu início, recria situações em formato de documentário, como no filme inaugural da categoria, Nanook, O Esquimó (Robert Flaherty, 1922). O cotidiano de Nanook, um esquimó de Port Hurt, no Canadá, e sua família, foi filmado com as rubricas – um norte para as ações dos “atores” – de Flaherty, o que não anula a veracidade das atividades exercidas por aquele grupo. Muitos anos depois, Eduardo Coutinho faz a réplica desta ideia em Jogo de Cena (2007).

A nota, aparentemente em um jornal, com a intenção de recrutar mulheres que desejavam contar suas histórias e participarem de um documentário, já revela uma das diretrizes que seguirá o filme de Coutinho. Como resultado do anúncio, 83 foram selecionadas, mas apenas 23 foram efetivamente chamadas para a obra, tendo alguns de seus relatos representados por atrizes como Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão. Apesar de declarar-se como um filme documental, a presença de intérpretes tão conhecidas pelo grande público traz à obra um caráter duvidável em relação ao que é verdadeiro e ao que não é. Com o alongamento do longa-metragem, a confusão se expande. Ocorre, então, um cruzamento e sua subsequente dúvida quanto a quem pertence o discurso, que se confunde devido a desenvoltura de todas as componentes da obra. Mas não é só isto. 

Como temática central, a maternidade esteve presente em todas as falas. Quase um trabalho antropológico, Jogo de Cena dá voz a quem passou por uma função estritamente feminina: a de gerar um filho. Os percalços e os diferentes meios sociais em que é concebida esta missão é o enfoque da película, dinâmica o suficiente para não ser segregacionista ou julgadora, já que a conexão entre as integrantes está justamente no errôneo juízo de que a gravidez é imaculada, como muitos pensam. Seja divina ou não, e principalmente, desejada ou não, a gestação é contextualizada perante a vida de cada mulher, que conta com uma clareza enorme, o contorno de tal condição, citando seus envolvidos mais próximos mas visando principalmente na relação entre elas e os homens, sejam pais ou parceiros. A ligação entre as entrevistadas, assim sendo, concentram-se na abusiva convivência com o patriarcado.

Os indivíduos mais aludidos no longa-metragem estão intrinsecamente unidos à questão dita acima, assumindo papéis de principais adversidades e impedidores de um maior acolhimento na conjuntura vivida pela mulher. Os traumas revelados por elas consideram um entorno masculino não favorável, invalidante e causador da solidão emocional e presencial que as mesmas se queixam. Apesar do desenrolar ramificado das narrações, dilemas como o machismo existente até na hora de se assumir a responsabilidade da ação do próprio homem, não extermina os demais contratempos advindos das experiências de cada uma. Preconceito racial, pobreza, menosprezo de suas opiniões, depressão, etc; são comorbidades depreciativas do estado das “personagens”, que sofrem, umas com bom humor e outras com um nítido pesar, pelas imposições da vida. A vida real, inclusive, nunca dá brecha para colocações de extrema fantasia. É totalmente crível e imaginável o que as constituintes da película estão contando e a facilidade de ter a sensação de se pôr no lugar delas é inegável.

Em uma sacada inteligente, o diretor Eduardo Coutinho compôs um quase “truque” ao não deixar claro quem é uma interpretação e quem é a proprietária verossímil da descrição falada no filme. O formato cenográfico da entrevistada sentada em uma cadeira com o fundo de um teatro com assentos vazios, sem trilha sonora, pode vir a ser monótono para quem espera um clímax. Um ponto de virada não irá acontecer já que não se trata de um longa-metragem dividido em atos, mas sim de um diálogo franco em que o ingresso do espectador está na adesão às histórias. A naturalidade que as convidadas demonstram – incluindo a espontaneidade com que elas se mexem e saem do enquadramento em primeiro plano da câmera – são meios de dar credibilidade ao que as mulheres transmitem. O público pode ser acometido pela emoção das moças sem maiores estilizações na filmagem.

Coutinho, em Cabra Marcado Para Morrer (1984), soube extrair singularmente a sinceridade de quem o cineasta deu maior destaque e, apesar de bem mais minimalista e lento, Jogo de Cena traz o mesmo modelo de franqueza de suas componentes. Forte e ao mesmo tempo simples, o filme é obviamente um documentário participativo, dado o direcionamento convergente para assuntos concordantes e guiados na maneira de contá-los. Contudo, parece livre a forma de atuação não só das atrizes mas das outras mulheres também, sem nada aparentar ser artificial e inventado. A ideia de igualar o real e o irreal indica a dificuldade que o cérebro possui de diferenciar a legitimidade das falas, mas também evidencia o que o cinema é capaz de fazer. A natureza “falsa” de uma gravação consegue sim contrapor este parecer ultrapassado de que tudo nela é ilusório, até porque os sentimentos produzidos na audiência em nada lembram um fingimento. Jogo de Cena pôde comprovar que estes dois mundos são nada mais do que complementares.    

Jogo de Cena (Jogo de Cena – Brasil, 2007)
Direção: Eduardo Coutinho
Roteiro: Raquel Freire Zangrandi, Bia Almeida
Elenco: Marília Pêra, Fernanda Torres, Andréa Beltrão, Mary Sheyla, Gisele Alves Moura, Débora Almeida, Sarita Houli Brumer, Lana Guelero, Jack Brown, Maria de Fátima Barbosa, Aleta Gomes Vieira, Marina D’Elia, Claudiléa Cerqueira de Lemos
Duração: 100 min.

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