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Crítica | Justiça – 1ª Temporada

A justiça como um ideal contraditório.

por Leonardo Campos
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Há, de fato, justiça no Brasil? Seria a justiça um conceito filosófico acoplado dentre de ideais utópicos? Quem na verdade se beneficia diante de uma situação onde a justiça precisa ser colocada em prática? São muitos os questionamentos e, consequentemente, a sensação de descrença diante deste conceito ao contemplarmos cada conflito desenvolvido na série Justiça, lançada em 2016, exibida na TV aberta e disponível no serviço de streaming Globoplay. A visão filosófica do conceito de justiça é um tema central que tem despertado debates e reflexões há séculos. Desde Platão e Aristóteles, aos pensadores contemporâneos, tais como John Rawls e Martha Nussbaum, a definição e a aplicação do conceito de justiça têm sido fundamentais para uma melhor compreensão da desejada ética na sociedade. No clássico A República, o filósofo Platão aborda o conceito de justiça como um princípio intrínseco e fundamental para a harmonia da sociedade e da “alma” individual. Para o pensador, a justiça envolve a noção de que cada indivíduo deve desempenhar seu papel adequado na sociedade, seguindo a ideia de que a alma humana é composta por três partes: razão, espírito e apetite.

A justiça, nesse contexto, consiste na harmonia entre essas partes, para alcançar o bem comum, algo que infelizmente, está longe da realidade dos personagens de Justiça, série criada por Manuela Dias e desenvolvida pelos textos da sala de roteiristas composta por Mariana Mesquita, Roberto Vitorino e Lucas Paraízo. Com 20 episódios, dirigidos por Isabella Teixeira, Luísa Lima, Marcus Figueiredo e Walter Carvalho, as figuras ficcionais dessa série precisam lidar com o entendimento do que é justiça e de como as suas vidas se desdobram depois do período em que estiveram na prisão. Além deles, temos também a jornada daqueles que gravitam em torno das consequências de suas respectivas prisões, num emaranhado de dor, ódio, desejo de vingança, dentre outros sentimentos angustiantes, reforçados em cada episódio pelo tema musical de abertura, assinado por Eduardo Queiroz, ou pela aparição sonora de Hallelujah, cover de Rufus Wainwright para a canção de Leonardo Cohen, tocada sempre que uma situação excessivamente dramática se estabelece diante do espectador.

Ambientada em Recife, tendo em vista modificar os padrões de enredos desenvolvidos no eixo sudeste, onde as narrativas giram em torno de acontecimentos no Rio de Janeiro ou em São Paulo, Justiça nos faz acompanhar quatro histórias conectadas, envolvendo crimes que ocorreram na noite do dia 26 de junho de 2009. Com um episódio por semana, o público contemplava com horror e indignação, as situações conflituosas de personagens acossados por tópicos temáticos costumeiramente debatidos quando falamos da tessitura social brasileira: racismo estrutural, masculinidade tóxica, a banalização do feminicídio, a falta de acesso aos códigos dispostos na legislação por pessoas desprovidas de posição financeira privilegiada, dentre outras celeumas seculares, não apenas por aqui, mas no mundo todo.

As questões que rodeiam os personagens da série estão cuidadosamente trabalhadas ao longo de todos os elementos que compõem os episódios. Já na abertura, temos um interessante jogo com a logo da produção. A cedilha do título está desfocada, como se nos dissesse que na base deste vocábulo, que é um forte conceito que nos estrutura, há algo de incongruente. Se observarmos com atenção, cada uma das vinte aberturas apresentam cenas de espaços diferentes. Filmados em uma única tomada, mas por enquadramentos diferentes, tendo em vista refletir sobre o tema que será a base reflexiva ao longo do episódio onde a abertura se encontra inserida, as aberturas são todas claustrofóbicas, tomada por espaços dominados pelo esvaziamento, sendo um recurso narrativo importante para o espectador levar em consideração, afinal, quando vista no streaming, geralmente pulamos esse trecho fundamental para a conexão maior com os acontecimentos que serão desenvolvidos na unidade dramática que compõe a série no geral. Criada por Alexandre Romano, Flavio Mac Menezes e Christiano Calvet, a abertura é um recurso fundamental, caro leitor, para o entendimento cabal do programa.

O recurso do jornal que noticia cada uma das histórias interligadas também é uma escolha estética e narrativa assertiva dos realizadores, pois permite uma aproximação maior com a dramaturgia de rua, termo cunhado pelos envolvidos para definir a composição visual do programa que se desenvolve na horizontalidade da capital pernambucana, captada em imagens melancólicas. Assim, a estética documental se funde de maneira orgânica com os aparatos do cinema ficcional. A criadora Manuela Dias, ao longo do período de um ano, escreveu em média 800 páginas de texto dramático, entrecortando jornais, artigos da área do Direito, além da escuta ativa de histórias reais, o que culminou na formatação de um material condensado, dando origem ao programa. É provável que essa quantidade substancial de histórias tenha gerado material de sobra para a organização do quadro de histórias contemplado em sua continuação, Justiça 2.

Com tom verossímil, ângulos mais fechados e iluminação que favorece o escurecimento, a base estrutural de Justiça se divide em quatro dias da semana. Esqueça os finais felizes, esteja preparado para constantes reviravoltas, pois Justiça se preocupa em estabelecer dramas humanos realistas, mas não necessariamente conectados em sua totalidade com este conceito. Por aqui, os espectadores conseguem se identificar com os personagens por causa da verossimilhança, afinal, mesmo não sendo uma cópia exata do nosso mundo, o texto dramático que nos é ofertado traz um modo de narração que já estamos constantemente expostos, e assim, tece um discurso sedutor, com o compromisso de apresentar um painel de fatos contemporâneos, vistos diariamente nos jornais ou testemunhados na vivência de nossos amigos, familiares ou conhecidos, tanto os próximos como os distantes.  A cada episódio, nos questionamos: o que eu faria diante de uma situação como a purgada por esses personagens?

Em um flerte com a perspectiva documental de Linha Direta: Justiça, a série ficcional retrata as hostilidades sociais de um Brasil permeado por instabilidade e incoerências. O distanciamento do que cada um acredita ser o ideal de justiça não se conecta com a legislação vigente e com as decisões das figuras humanas que manipulam tais documentos e decidem o futuro alheio. Na linha narrativa dos “episódios da segunda-feira”, acompanhamos Elisa de Almeida (Deborah Bloch) e seu desejo de vingança diante de Vicente Menezes (Jesuíta Barbosa). Na “terça-feira”, vislumbramos a história que é mais dolorosa para quem vos escreve, enquanto espectador que se contorce a cada episódio: o caso de Fátima Nascimento (Adriana Esteves). Na “quinta-feira”, nós seguimos a jornada de Rose Silva dos Santos (Jéssica Ellen) e na “sexta-feira”, observamos com espanto os caminhos de Maurício Pereira de Oliveira (Cauã Reymond). Diante destas histórias, há os demais personagens que se cruzam, figuras esféricas que podem até ter um tempo relativamente menor em cena, mas são escadas de luxo para as ações e falas dos que estão em maior destaque. É o caso de Kellen (Leandra Leal), de volta, por sinal, em Justiça 2.

Mas, afinal, o que cada feixe de personagens em cruzamento retrata? No caso de Vicente Menezes, temos um ato imediatista de posse diante de uma traição, algo que ocasiona o assassinato da personagem interpretada por Marina Ruy Barbosa, a filha de Elisa. Na saga de Fátima, uma doméstica que sofre com as perturbações do cachorro do vizinho, animal que não ataca apenas as galinhas de seu quintal, de onde tira o seu sustento, mas também os seus filhos, perseguidos constantemente pela criatura “estraga-prazeres”. Assim, temos uma ação (a aniquilação do cão) que culmina numa reação (a implantação de drogas em sua humilde residência por parte do tal vizinho, um policial envolvido em atos de corrupção). Igualmente dolorosa é a história de Rose, recém-aprovada em jornalismo, mas presa por posse de drogas numa festa. Sua amiga e companheira de farra, responsável pelo material, é uma jovem branca, não abordada pelos policiais. Mas, como sabemos, estamos no Brasil, território onde a democracia racial é uma utopia. Por ser negra, é abordada violentamente e presa.

Por fim, temos a difícil missão de Maurício, homem que comete eutanásia em sua esposa, interpretada por Marjorie Estiano, dançarina que perde todos os movimentos e tem a sua carreira brilhante encerrada após ser atropelada por Antenor Ferraz (Antonio Calloni), um político corrupto que foge sem prestar socorro. Todos os enredos, como já mencionado, se cruzam, com os personagens presos retomando as suas vidas após sete anos na cadeia. Alguns querem vingança, outros desejam apenas seguir adiante. Há, no entanto, os coadjuvantes catalisadores de ações que colocam os planos dessas pessoas mais centrais em risco. É aqui que entram os personagens de Leandra Leal, Drica Moraes (como a esposa de Antenor Ferraz), Vladimir Brichta (Celso, passador de drogas da praia), Débora Carneiro (Luísa Arraes, a amiga de Rose), Cássio Gabus Mendes (Heitor Diniz, marido de Elisa), Mayara do Nascimento (Julia Dalavia, a filha de Fátima), Tobias Carrieres (Jesus do Nascimento, o filho de Fátima), Júlio Andrade (o cantor Firmino Maia), dentre tantos outros, todos impactados de alguma maneira pelos crimes que levaram os quatro personagens mais centrais à sentença de sete anos.

Com direção artística de José Luiz Villamarim, Justiça foi desenvolvida por uma competente equipe técnica. A direção de fotografia de Walter Carvalho capta, com eficiência, as contradições econômicas, arquitetônicas e sociais do Recife. A capital pernambucana, conhecida por seu desnivelamento social e conjugação entre desigualdades é o lugar ideal para o contraste entre os personagens e suas necessidades dramáticas ao longo do enredo. Para os realizadores, há muitas questões de honra e de rivalidade neste território, algo que em meu ponto de vista, lembra bastante algumas questões trabalhadas pelos escritores do Romance de 30, salvaguardadas as devidas proporções comparativas. A melancolia da praia de Boa Viagem, a escolha do histórico edifício Holiday, além dos planos sem cortes excessivos, respeitosos com a dinâmica dos atores ao desempenhar os seus personagens, transformaram Justiça em um fenômeno televisivo bastante popular, assistido, comentado, vivenciado e até trabalhado para reflexões pedagógicas, como é o caso de quem vos escreve. Eis uma série de entretenimento, mas com apelo didático.

Tais escolhas da direção de fotografia, voltada ao processo de filmar os personagens de maneira a criar uma relação de empatia com o público, ressoam também em outros setores responsáveis pela composição visual do programa. Há muita sutileza e importância na supervisão de som de Rodrigo Meirelles. Precisamos lembrar que diferente da trilha sonora, o som é um grande aliado do roteiro, capaz de colocar em cena emoções previstas nas rubricas do texto dramático. É o ranger de uma porta, um soluço ou choro copioso de algum personagem fora do enquadramento, o arranhar de pneus diante de um sinistro de trânsito, dentre outros recursos auditivos que potencializam as sensações dramáticas da narrativa. A atuação da assistente Elisa Emmel, no design de produção, merece destaque pelo trabalho de composição cenográfica, inserção de adereços comuns ao âmbito da direção de arte, bem como os demais requisitos que formam a linguagem audiovisual de Justiça. Ademais, o trabalho de Veridiana Gaertner nos figurinos é essencial para identificação dos espectadores, pois cada traje revela, cuidadosamente, as dimensões física, psicológica e social dos personagens dispostos em cena.

Como não posso deixar de destacar, a seleção musical de Justiça é assertiva ao evitar excessos internacionais e manter composições brasileiras com letras e ritmos fortes para acompanhar os impactos das histórias destes personagens sofridos ao longo dos 20 episódios. Temos O Que Será? (Chico Buarque, além de uma versão com Caetano Veloso), Pedaço de Mim (Chico novamente, com a voz poderosa de Zizi Possi), Oração (Nuria Mallena), Amor Perfeito (Roberto Carlos), Gente Aberta (Erasmo Carlos), Último Romance (Los Hermanos), Risoflora (Elba Ramalho), Acabou Chorare (Novos Baianos), Pense em Mim (Johnny Hooker), Dona da Minha Cabeça (Geraldo Azevedo), Xique-Xique (Tom Zé), Revelação (Fagner), dentre outras faixas que integram os perfis dramáticos dos personagens desta série inovadora para a dramaturgia brasileira, distanciados dos clichês que geralmente focam no bem e no mal, na exaltação dos mocinhos e na derrota dos vilões. Aqui, não há espaço para maniqueísmos. Todos são inteiramente humanos, esféricos, dotados de defeitos e qualidades.

Quando a série termina, os ideais platônicos mencionados anteriormente na abertura estão no limbo.

Justiça – 1ª Temporada | Brasil, 2016
Showrunners: Manuela Dias
Diretores: José Luiz Villamarim, Isabella Teixeira, Luísa Lima, Marcus Figueiredo, Walter Carvalho
Roteiristas: Manuela Dias, Mariana Mesquita, Lucas Paraizo, Roberto Vitorino
Elenco: Débora Bloch, Marina Ruy Barbosa, Jesuíta Barbosa, Camila Márdila, Cássio Gabus Mendes, Priscila Steinman, Luiz Carlos Vasconcelos, Pedro Nercessian, Adriana Esteves, Julia Dalavia, Letícia Braga, Tobias Carrieres, Bernardo Berruezo, Leandra Leal, Enrique Díaz, Ângelo Antônio, Júlio Andrade, Leandro Léo, Clarissa Pinheiro, Jéssica Ellen, Luisa Arraes, Vladimir Brichta, Igor Angelkorte, Teca Pereira, Fernanda Vianna, Magdale Alves, Karine Teles, Cauã Reymond, Marjorie Estiano, Antônio Calloni, Drica Moraes
Duração: 20 episódios – 50 minutos em média cada episódio

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