Home QuadrinhosMinissérie Crítica | Justiça (2005 – 2007)

Crítica | Justiça (2005 – 2007)

por Luiz Santiago
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A ideia de que os heróis sempre vencem talvez já tenha incomodado a todos os leitores de quadrinhos do mundo. Ou pelo menos os tenha feito pensar sobre a necessidade de os heróis sempre vencerem e seguirem determinadas linhas de ação, as famosas âncoras morais que os prendem a princípios “mais altos e incorruptíveis”, por assim dizer. Foi perseguindo esta ideia que Alex Ross, Jim Krueger e Doug Braithwaite conceberam a série Justiça, publicada nos Estados Unidos em 12 edições, entre os anos de 2005 e 2007. A trama começa com o sonho de um apocalipse nuclear compartilhado por diversos vilões, sonho este que sempre termina com a impossibilidade de a Liga da Justiça da América impedir a destruição do mundo, frustrando a enorme confiança que a população do planeta depositou neles.

Em essência, o roteiro de Justiça, que é escrito por Ross e Krueger, trabalha em dois caminhos de inspiração. O primeiro deles, em uma homenagem à série Super Amigos, principalmente à 3ª Temporada, lançada originalmente como “outra série”, O Desafio dos Superamigos (1978), onde a Liga e mais uma série de outros heróis enfrentaram de maneira recorrente uma improvável união de vilões conhecida como Legião do Mal (Legion of Doom). O segundo caminho está diretamente atrelado a Ross, especialmente às suas obras LJA: Origens Secretas (2002) e Liberdade e Justiça (2003), onde colocou a Liga em situações que iam das mais familiares até os enormes conflitos típicos de sua jornada. Já em Justiça, talvez por ter mais dois companheiros na produção (um no roteiro e outro na arte), a premissa tem um “e se…?” a tiracolo, fazendo-nos perguntar se este era realmente um momento onde a equipe perdia e os vilões passavam a fazer um trabalho até mais completo do que fizeram os heróis.

Ainda na primeira edição precisamos lidar com questionamentos políticos e sociais quando percebemos que a Legião do Mal está realmente transformando o mundo em um lugar melhor, com destaque aí para o Capitão Frio e para Hera Venenosa, que deram água e cobertura vegetal para regiões áridas e semi-áridas. Depois vemos os esforços de Brainiac darem certo e pessoas com deficiências físicas poderem fazer coisas que jamais haviam sonhado. E como se não bastasse, esses vilões estão criando cidades, cada uma com uma característica arquitetônica e líder diferentes, todas, porém, com o mesmo princípio de paz e aceitação entre seus moradores. Uma verdadeira Utopia tornada real por aqueles que durante muito tempo foram os bandidos mas que agora resolvem mudar esta situação.

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Este é o novo time benfeitor da humanidade. Ou não. 

É a partir deste momento que os heróis começam a surgir e o discurso de Luthor e a opinião pública olham para o mundo ideal prometido e só têm a agradecer. Quando foi que os heróis fizeram mudanças reais e locais para os famintos? Quando foi que os heróis fizeram mudanças reais para tornar regiões aráveis? Para fazer paralíticos andarem? O que os humanos conheciam deles era outro tipo de milagre. Algo mais épico, mais distante. O que agora conheciam dos ex-vilões mudou diretamente suas vidas para melhor. Como resistir? O texto de Ross e Krueger não poupa as devidas problematizações ao heroísmo visto de um ponto de vista mais realista, fazendo com que a primeira parte da saga seja não penas uma excelente preparação para uma grande batalha mas também uma longa consideração sobre a ação de heróis e vilões no mundo. Sem contar que o plano feito para afastar a Liga é incrivelmente bem aplicado, principalmente no caso de Hal Jordan, que tem o melhor momento de exílio temporário.

Um dos grandes diferenciais desta série — também servindo como estratégia de venda — foi o fato de termos uma organização diferente, considerando que é um trabalho de Alex Ross. A única edição que o artista desenhou sozinho foi a edição #7. Já nos tomos #9, 10 e 11, quem desenhou sozinho foi Doug Braithwaite. Em todas as outras, o lápis é dividido pelos dois artistas e Ross assume a arte-final, que divide apenas uma vez com Braithwaite, na edição #8. Com isso, temos uma movimentação de personagens, diagramação, interação entre heróis e vilões, variedade na coreografia de lutas e trabalho com personagens no ar e na terra bem mais dinâmicos do que se estivéssemos falando de uma obra inteiramente ilustrada por Ross. Como sabemos, o artista é parte do panteão dos grandes mestres da arte nos quadrinhos, mas seus painéis funcionam mais como quadros, verdadeiras obras de arte que registram um momento, do que como uma cena (aqui levando pelo lado mais… clichê da nona arte, no bom sentido da palavra) mostrando uma luta ou reunião indivíduos e objetos em continuidade.

O mais interessante é que o estilo dos dois desenhistas é muito parecido e a união teve um resultado perfeito, além de fazer com que a série saísse mais rápido, pois Ross não é apenas conhecido pela grandiosa qualidade de seus trabalhos mas pela justificada demora para entregá-los. Com dois excelentes desenhistas no leme, o nível de referências visuais e textuais aumentaram, o que também pode ser atribuído ao fato de esta ser uma história fora da continuidade DC, permitindo grande liberdade no uso dos personagens e estrutura dos planos de vilões da Era de Prata, além de recolocação e ampliação de elementos clássicos como a chave da Fortaleza da Solidão, a transformação de Hal em energia para se salvar dentro do anel, o alcance dos poderes do Aquaman e do Caçador de Marte e a ligação desse momento crítico com o futuro dos próprios heróis, no Século XXX, personificados pela Legião dos Super-Heróis.

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Muitas frentes de batalha. Muita emoção em jogo.

À medida que a história avança percebemos alguns pontos que poderiam ser facilmente retirados da trama, com destaque principal para a participação do Coringa, que só está aqui por estar. Todas as poucas falas e presença do palhaço não têm nenhum valor narrativo e mesmo a destruição das cidades que empreende na reta final seria conseguida de outra forma, era só uma questão de tempo. Outro ponto que incomoda é que no meio de tanta complexidade do enredo, com os heróis sendo colocados em seus limites (vejam as imensas provações pelas quais Superman, Aquaman e Mulher-Maravilha passam, tendo seus corpos e mentes parcial ou totalmente destruídos/maculados), vemos o arco dos vilões se abrir para pequenas “últimas tentativas”, como a manipulação de Brainiac para que todos os mísseis da Terra fossem disparados. Claro que isso tem um valor enorme mais adiante, quando Batman conversa com Alfred a respeito da reconstrução, mas o momento e o modo como esse impasse é apresentado não é exatamente tão orgânico como deveria.

Em compensação, o elemento-surpresa parece ter sido a principal preocupação dos autores na reta final, empregando com bastante competência as reviravoltas da história. O plano para que os Homens Metálicos sirvam como “armadura” para os heróis não se contaminarem com os nanorobôs de Brainiac é bastante inteligente e garante um dos melhores momentos de luta de Justiça, mostrando também uma lição de humildade e parceria entre os heróis, que também recebem nesta cena a ajuda de outro grupo “B” da DC, a Patrulha do Destino. Claro que as esperadas rixas viriam à tona, como a que temos entre Homem-Borracha e Homem Elástico, mas são apenas manifestações de ego que, em maior ou menor grau, podem ser vistas em outros heróis ao longo da trama. O mesmo podemos falar dos momentos de humor e da longa exploração quase pessoal que o roteiro dá às questões humanitárias e ao dilema da dualidade entre o bem e o mal, algo que Ross trabalhara em outra de suas obras, Reino do Amanhã (1996).

As participações especiais também têm um bom peso aqui, tornando o dilema não só simplesmente heroico, onde os super-heróis lutam para salvar o mundo, mas também pessoal, onde lutam para salvar filhos, cônjuge, parentes e amigos que foram sequestrados pelos vilões. Um dos maiores momentos nesse sentido é a chegada da Tropa dos Lanternas Verdes, que segura os mísseis disparados, impedindo a destruição da Terra. A sensação de vitória vem imediatamente e segue com os momentos de resolução de todo o caos, com Luthor sendo preso, Brainiac sendo exposto com sua nave em um museu de Kandor (!), a Mulher Maravilha renascendo na Ilha Paraíso e o discurso final, com a mensagem que terminaria a saga.

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A concepção e a aplicação de um plano inteligente.

Qualquer pessoa que escreve sabe o quão é difícil terminar um texto, seja ele fictício ou não (entendam isso como um desabafo também). Aqui em Justiça, os autores acabaram avançando demais os eventos finais para que se chegasse à última reflexão. Em oposição ao início pausado, progressivamente ganhando fôlego e com apresentação coerente de todos os principais personagens, o final só espera que as consequências básicas se apresentem (prisão/punição dos culpados e reconstrução do Satélite da Liga da Justiça, que em sua segunda versão parece a Estrela da Morte) para que a trama avance a passos largos para o seu fim. Poderia haver um cuidado maior com o encadeamento das coisas aqui, assim como houve no início. A reflexão sobre o grande momento de ameaça à Terra e ao confronto da Liga com um grupo de vilões ressalta a fragilidade dos heróis. Por mais poderosos que sejam, sua atuação é direcionada para grandes invasões, crimes e empreitadas planetárias enquanto a cura dos micro-problemas é dada às pessoas comuns.

Olhando por este lado entendemos que esta é uma definição esperada e necessária para que os próprios heróis continuem existindo. Mas a coisa vai além. Como diz um certo rapper em uma canção, “um mundo perfeito nunca é perfeito, é apenas preenchido com mentiras“. Esta é a sensação que temos ao reconsiderar a possível “cura da Terra” e o redirecionamento das ações dos heróis para fazer pesquisas e lutarem para acabar com a fome, para levar água onde não tem, para curar enfermos. Mas sempre há nesta utopia o fator humano. A carga dual que todos carregamos e que é ressaltada em pelo menos metade de toda essa história. É como se humanos, aliens, heróis e vilões estivessem presos a um ciclo eterno de batalhas entre si, tentando salvar a maioria do extermínio. Em alguns casos, esse extermínio não precisa de nenhum vilão para acontecer. É aí que o discurso final nos pega em cheio. A esperança de um futuro melhor é igualmente acompanhada pela certeza de que o futuro ainda precisará de heróis para combater o mal, seja ele externo ou vindo do próprio homem. Nessa jogada onde cada um pode ter dois papéis, fica no ar a pergunta que para mim é o cerne dessa história: como é possível haver justiça para todos?

Justiça (Justice Vol.1) — EUA, 2005 – 2007
No Brasil:
Em 12 edições (Panini, 2006 – 2007) / Edição Definitiva (Panini, 2013) / Eaglemoss – Livros 27 e 28 (2016)
Roteiro: Alex Ross, Jim Krueger
Arte: Alex Ross, Doug Braithwaite
Arte-final: Alex Ross
Cores: Alex Ross
Letras: Todd Klein
Capas: Alex Ross
Editoria: Joey Cavalieri, Rachel Gluckstern, Michael Wright
492 páginas (Edição Definitiva da Panini)

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