Home TVTemporadas Crítica | Justified – 1ª Temporada

Crítica | Justified – 1ª Temporada

A impossível fuga do passado.

por Ritter Fan
2,K views

  • Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas da série e, aqui, de todo o material envolvendo o personagem Raylan Givens.

Depois de encarnar o inesquecível xerife Seth Bullock na magistral série Deadwood, criminalmente cancelada a destempo pela HBO, Timothy Olyphant vestiu o chapéu de caubói novamente – agora um distinto Stetson em cor clara – quatro anos depois como o igualmente inesquecível subdelegado federal Raylan Givens, no neo-western Justified (ou Justificado por aqui, como queiram) desenvolvido por Grahan Yost com base em personagem criado pelo romancista americano Elmore Leonard e que surgiu pela primeira vez em seu romance Pronto, de 1993, ainda que o gatilho específico para a série tenha sido o conto Fogo no Buraco, publicado na coletânea Quando as Mulheres Saem para Dançar, de 2009.

Em sua primeira temporada, a série apresenta e desenvolve um tema que seria o pano de fundo para todas as demais, ainda que naturalmente com menos presença em algumas: a vã tentativa de um homem de fugir de seu passado. Sem perda de tempo, nos segundos iniciais do primeiro episódio, somos apresentados a esse homem, um literal caubói moderno paramentado de maneira completamente idiossincrática e anacrônica com seu chapéu em plena Miami, onde trabalha para o U.S. Marshals Service (ou Serviço de Delegados dos Estados Unidos), entidade federal americana que tem como objetivos principais a proteção do Poder Judiciário, a recuperação de fugitivos da lei, a gestão de bens apreendidos de criminosos e assim por diante, ou seja, algo diferente dos policiais e agentes do FBI que costumam protagonizar séries e filmes.

Raylan é o literal peixe fora d’água, mas um peixe violento, que não hesita em atirar, no estilo de saque rápido do Velho Oeste quando necessário e é exatamente isso que ele faz nesses minutos iniciais, algo que, aprendemos depois, é um comportamento recorrente dele, ainda que “justificado”, o que o leva a ser transferido de Miami de volta à sua terra natal, o Kentucky, com seus chefes literalmente varrendo o problema para debaixo do tapete. E é no Condado de Harlan, bem nos Apalaches e, portanto, na “terra dos caipiras” (pensem em Amargo Pesadelo), que a temporada se desenvolve, com o protagonista readaptando-se à sua vida pregressa e tendo que enfrentar inimigos que eram seus amigos, principalmente o supremacista branco Boyd Crowder (Walton Goggins), além de seu próprio pai malandro e criminoso Arlo Givens (Raymond J. Barry).

Apesar de externamente Raylan Given ser um piadista, com um arsenal de comentários irônicos e sarcásticos, e, aparentemente, sempre mostrar-se disposto a tudo, o grande trunfo da marcante atuação de Olyphant é usar essas características para mascarar uma profunda melancolia. Como Michael Corleone, que tenta sair da vida de crime, mas é tragado de volta, Raylan não tem saída que não lidar com os literais demônios de seu passado, o que empresta, também, uma pegada de vergonha que leva à raiva e até a ares de anjo da vingança ao personagem, algo que o ator deixa entrever com olhares e falas com dentes cerrados e uma postura de alguém que sabe que está de volta à sua prisão, com poucas perspectivas de escapar.

Mas também como Michael, Raylan, bem lá no fundo, não quer realmente escapar. Ele bem que tentou, mas, na verdade, ele não fez esforço para mudar de maneira a adaptar-se a uma nova vida. O uso do chapéu de caubói e toda sua linguagem corporal de pistoleiro de filme de faroeste – só faltam as esporas e o cavalo – são provas de que ele não tem como escapar de quem ele verdadeiramente é, algo que é amplificado por sua conexão amorosa com a bela Ava Crowder (Joelle Carter), que mata seu marido Bowman Crowder (irmão de Boyd) com uma escopeta em sua sala de jantar e passa a ser ameaçada pelo restante da família, especialmente pelo patriarca Bo Crowder (M. C. Gainey) e, mais a frente, com sua também bela ex-esposa Winona (Natalie Zea), agora casada com um corretor de imóveis almofadinha.

Apesar de ter apenas 13 episódios, a temporada, estruturalmente, segue a cartilha mais famosamente utilizada por Arquivo X, com episódios dedicados a contar uma história una – os conflitos de Raylan Givens com os Crowders e com seu pai, tendo como pano de fundo seus entreveros com a máfia de Miami – intercalados por “casos da semana”, algo que, pelo menos em princípio, não deveria ter lugar em uma série curta assim. No entanto, Graham Yost, comandando um time fera de roteiristas, faz algo muito raro de se ver, que é fazer essa estrutura híbrida funcionar bem. Aliás, apenas “bem” não faz jus à 1ª temporada de Justified.

Para começo de conversa, é absolutamente fascinante ver como Raylan Givens é um personagem cuidadosamente construído. Não sabemos muito dele no começo da temporada, mas é admirável ver o descortinamento cadenciado de seu passado e seu desenvolvimento ritmado como personagem ao longo dos 13 episódios. Seus diálogos são um primor de comicidade trágica e suas interações com os personagens em sua órbita, sejam vilões, sejam amantes, sejam colegas de trabalho, com destaque para seu chefe Art Mullen (Nick Searcy) não são menos do que tonalmente perfeitas. Olyphant encarna o subdelegado como uma fusão do Homem Sem Nome, de Clint Eastwood, com o sargento Martin Riggs, de Mel Gibson, encontrando um meio-termo que o torna ao mesmo tempo agradabilíssimo e engraçado, mas durão e invencível, com uma certa camada de maluquice que aos poucos vai sendo revelada.

Na outra ponta, há o excelente trabalho de Walton Goggins, como inimigo, mas também amigo de Raylan, Boyd Crowder. Se, no começo, sua caracterização como neonazista cria aquela antipatia imediata, não demora a percebermos que ele não é exatamente o que esperamos de alguém assim e nem os roteiros têm interesse em serem óbvios ao seguirem os tropos do gênero. Ele, na verdade, navega direitinho com a maré e a exacerbação de seu preconceito é muito mais um meio para se chegar a um fim, do que exatamente aquilo que ele realmente pensa. Afinal, Boyd, mesmo enraizado ali no Condado de Harlan, sem nenhuma vontade de sair como seu amigo de infância Raylan saiu, é um ponto fora da curva em termos de inteligência, eloquência e pensamento estratégico, o que subverte a percepção clássica do “caipira americano”. E Goggins sabe exatamente como manobrar o espectador de forma que, ao final de tudo, estejamos é torcendo por seu personagem e não querendo vê-lo preso ou morto pela postura odiosa que demonstra ter no início.

E é principalmente por essas duas razões acima que a estrutura híbrida que reúne “episódio soltos” do tipo caso da semana com “episódios de história” funciona tão bem. Nós simplesmente queremos ver mais de Raylan Givens, não interessa em que cenário ou fazendo o que. O personagem é rico o suficiente para oferecer elementos interessantes e desafiadores mesmo em narrativas paralelas que, aliás, abrem espaço para Olyphant mostrar sua versatilidade – ele fingindo ser jardineiro de uma casa para tentar achar um fugitivo lá dentro é hilário -, além de os roteiros sempre saberem povoar cada uma das narrativas em tese desamarradas da história principal com informações que ajudam a construir a personalidade e o passado do protagonista. E, com isso, quando os episódios de história chegam, eles já têm a vantagem de serem mais encorpados justamente por sabermos mais de Raylan, com Boyd, por seu turno, funcionando como seu reflexo, como o que o subdelegado provavelmente seria se não tivesse escapado de sua vida ao escolher profissão em antítese a todo o seu redor.

O neo-western Justified, já em seu nascimento, revela o cuidado de Graham Yost em travar uma conversa bem mais profunda com seu espectador do que apenas entregar uma boa série de ação policial, algo que ele, aliás, sem dúvida faz. O showrunner não só tem interesse em estudar a oposição entre determinismo social e a tentativa de fuga dele, lidando com as consequências de escolhas feitas ainda em tenra idade e como é difícil – quiçá impossível – fugir de seu destino, como constrói uma sólida e complexa teia de relações interpessoais que relativiza os dois supostos lados opostos em um conflito, aproximando-os muito mais do que afastando-os e tudo isso sem perder a veia de humor inteligente, irônico, sarcástico, por vezes ácido, que subjaz em cada linha de diálogo.

Justified – 1ª Temporada (EUA, de 16 de março a 08 de junho de 2010)
Criação e desenvolvimento: Graham Yost (baseado em obras de Elmore Leonard)
Direção: Michael Dinner, Fred Keller, Adam Arkin, Jon Avnet, Rod Holcomb, Michael Watkins, Peter Werner, John Dahl, Tony Goldwyn, Michael Katleman
Roteiro: Graham Yost, Benjamin Cavell, Chris Provenzano, Gary Lennon, Wendy Calhoun, Dave Andron, Fred Golan, Benjamin Daniel Lobato
Elenco: Timothy Olyphant, Nick Searcy, Joelle Carter, Jacob Pitts, Erica Tazel, Natalie Zea, Walton Goggins, David Meunier, M. C. Gainey, William Ragsdale, Raymond J. Barry, Linda Gehringer, Rick Gomez, Doug E. Doug, Damon Herriman, Brent Sexton, Jere Burns, Alexandra Barreto, Ray Porter, David Eigenberg
Duração: XX min. (13 episódios)

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais