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Crítica | Justified: Cidade Primitiva

Raylan Givens ainda em ação.

por Kevin Rick
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  • Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas da série e, aqui, de todo o material envolvendo o personagem Raylan Givens.

Há algo de sempre perigoso em retomar uma obra que terminou em alta, ainda mais quando essa obra é uma das séries mais consistentes do último ciclo de televisão aberta nos Estados Unidos. Justified, ao longo de seis temporadas, construiu um faroeste moderno ambientado no interior do Kentucky, capaz de equilibrar tensão policial, humor ácido e personagens que pareciam ao mesmo tempo maiores que a vida e profundamente enraizados em um realismo social. Sua despedida em 2015 foi exemplar, em um duelo final que concluiu não apenas uma trama, mas todo um arco mítico entre Raylan Givens e Boyd Crowder, com Ava como vértice trágico desse triângulo. Era um encerramento digno e definitivo. Retornar a esse universo, portanto, exigia coragem e uma razão sólida para justificar sua existência.

Justified: Cidade Primitiva chega como uma minissérie que desloca Raylan de Harlan para Detroit, tentando atualizá-lo em um novo contexto urbano, com novos vilões e dilemas. No entanto, em vez de soar como expansão ou reinvenção, a temporada acaba se revelando um eco distante da força da série original. O resultado é irregular, monótono em diversos pontos, e sobretudo incapaz de recapturar a energia narrativa que tornava cada episódio de Justified tenso e imprevisível. O faroeste moderno, antes enraizado, aqui se transforma em um pastiche de si mesmo.

O primeiro problema evidente de Cidade Primitiva é o ritmo. Ao contrário da série original, que alternava investigações semanais com arcos maiores, garantindo variedade e frescor, ainda que em detrimento da narrativa em certos pontos, a minissérie se prende a uma narrativa contínua que raramente encontra fôlego. Os episódios alongam situações sem necessidade, repetem dinâmicas e muitas vezes parecem girar em círculos. O que antes era uma dança precisa entre episódios autônomos e o arco geral, aqui se torna uma cadência cansada, sem surpresas, sem o prazer que Justified tinha de transformar até um personagem secundário em alguém memorável.

Essa monotonia é agravada pela ausência quase completa do aspecto investigativo. Na série original, Raylan e os marshals se envolviam em casos que traziam tanto ação quanto pequenos retratos sociais de Harlan. Havia um senso de investigação criminal, de rastreamento, de descoberta. Em Cidade Primitiva, essa dimensão praticamente desaparece: os policiais parecem sempre um passo atrás, mas não porque os criminosos sejam geniais, e sim porque a trama prefere simplificar a tensão. O resultado é uma série que perde uma de suas marcas mais importantes, reduzindo a experiência a um embate previsível entre Raylan e um vilão mal construído.

Se Boyd Crowder foi um dos antagonistas mais complexos da televisão, Clement Mansell é seu oposto absoluto, por mais que Boyd Holbrook faça um esforço tremendo em dar personalidade ao antagonista. Em vez de camadas, ele é superfície; em vez de contradição, ele é caricatura. Mansell é apresentado como um criminoso caótico, violento, imprevisível, mas a série nunca consegue dar substância a esse caos. Ele é mal porque é mal, um psicopata que mata sem propósito claro, mas também sem fascínio, sem aquela ambiguidade que transformava Boyd em um vilão fascinante.

A falta de desenvolvimento faz com que Mansell se torne repetitivo. Suas aparições se confundem: violência gratuita, ameaças vazias, teatralidade sem peso. Não há um arco de crescimento, nem mesmo um senso de urgência. O resultado é um antagonista unidimensional, que não oferece a Raylan um verdadeiro espelhamento, tampouco uma ameaça real, mas apenas um obstáculo temporário (a cena que ele ameaça a filha de Raylan é o único momento de destaque do vilão para mim). Para uma série que sempre se destacou pelo modo como seus vilões eram, muitas vezes, mais interessantes do que os próprios heróis, essa superficialidade soa como um retrocesso.

Outro problema está nas relações pessoais que a temporada tenta construir. O romance entre Raylan e a advogada Carolyn Wilder é um dos pontos mais frágeis. Não por falta de química entre Timothy Olyphant e Aunjanue Ellis-Taylor, mas porque a trama simplesmente não encontra espaço narrativo para que esse relacionamento faça sentido. Ele parece surgir mais como uma conveniência de roteiro do que como consequência orgânica dos acontecimentos. Em uma temporada que já sofre de lentidão, investir em um romance mal encaixado só acentua a sensação de deslocamento.

Da mesma forma, a participação da filha de Raylan nos episódios iniciais é problemática. A ideia de colocá-lo ao lado de Willa, agora adolescente, poderia ter rendido uma camada interessante ao personagem, confrontando-o com sua incapacidade de ser pai presente. No entanto, a execução é desajeitada: Willa aparece mais como um elemento incômodo do que como catalisadora de reflexão. Sua presença constantemente irritante, embora compreensível dentro da adolescência, é trabalhada de maneira repetitiva, e o roteiro não consegue tirar desse conflito o impacto que poderia ter. Ainda assim, a jovem funciona como símbolo daquilo que Raylan tenta, em vão, equilibrar: o papel de pai e o chamado inevitável da violência.

Se a temporada resiste em meio a tantas limitações, é por causa de Timothy Olyphant. Seu Raylan Givens continua sendo um personagem magnético, mesmo quando a narrativa não o favorece. Mais envelhecido, mais cansado, ele transmite um peso existencial que faz sentido dentro da cronologia. Raylan parece sempre à beira de largar tudo, mas é atraído de volta para o mesmo ciclo de violência que o define desde o início.

Esse tema, de que não há saída possível, é o fio que conecta Cidade Primitiva à série original. Raylan está preso ao mito do pistoleiro moderno, incapaz de abandonar a arma e a lei. O último episódio, com o gesto irônico de olhar para o celular, é uma síntese disso: mesmo fora de Harlan, mesmo em outro cenário, ele continua sendo puxado de volta para a mesma vida. Essa autorreferência aos temas centrais de Justified é um dos acertos da minissérie, ainda que apareça de forma tímida diante das falhas estruturais.

Visualmente, Cidade Primitiva tenta se reinventar ao deixar para trás os campos áridos e rurais de Kentucky e abraçar a paisagem urbana de Detroit. Essa mudança, em teoria, poderia oferecer novos contrastes, novos tipos de conflitos. No entanto, a cidade nunca ganha vida própria. Ao contrário de Harlan, que era praticamente um personagem, Detroit aparece como pano de fundo genérico, sem identidade marcada. O faroeste urbano prometido se dissolve em ruas sem personalidade, bares indistintos, espaços que não carregam o mesmo simbolismo do interior.

O desfecho da temporada tenta recuperar algo da densidade do original. Raylan mata Mansell em uma cena que mistura tensão e ironia, acreditando que o vilão estava prestes a sacar uma arma quando, na verdade, segurava uma fita cassete com sua música. O epílogo, com Carolyn se tornando juíza e Raylan recusando uma promoção, reafirma o tema da fadiga. Ele está cansado, mas não consegue escapar.

Justified: Cidade Primitiva é, no fim, um retorno que não se justifica plenamente. Carente de ritmo, repetitiva em suas dinâmicas, incapaz de construir um vilão à altura e apoiada em relações deslocadas, a temporada soa mais como uma sombra da obra original do que como sua continuação digna. O que antes era faroeste moderno, com personagens complexos e enredos vivos, aqui se dilui em uma trama cansada, que tenta recapturar a magia mas se perde em caricaturas. Ainda assim, há lampejos: Timothy Olyphant segue impecável como Raylan, os temas da violência cíclica e da impossibilidade de fuga continuam presentes, e o final oferece um eco irônico que conecta a minissérie à essência de Justified, quem sabe com uma nova trama sobre a última caçada de Raylan e Boyd.

Justified: Cidade Primitiva (Justified: City Primeval) | EUA, 2023
Criação e desenvolvimento: Dave Andron, Michael Dinner (baseado em obras de Elmore Leonard)
Direção: Michael Dinner, Jon Avnet, Gwyneth Horder-Payton, Kevin Rodney Sullivan, Sylvain White, Katrelle Kindred
Roteiro: Dave Andron, Michael Dinner, Eisa Davis, Chris Provenzano, Taylor Elmore, V.J. Boyd
Elenco: Timothy Olyphant, Aunjanue Ellis, Vondie Curtis-Hall, Adelaide Clemens, Marin Ireland, Victor Williams, Norbert Leo Butz, Boyd Holbrook
Duração: 432 min. (08 episódios)

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