Depois de quatro longas-metragens entre 1984 e 1994, com apenas o original merecendo destaque, a franquia Karate Kid ficou na geladeira por 16 anos, ressurgindo em 2010 na forma de um remake passado na China em que a arte marcial muda, mas não no título (coisas de Hollywood…). Mais alguns anos se passaram e alguém teve a improvável ideia de reaproveitar a propriedade na forma de série e focando em um arco de redenção tardio de Johnny Lawrence (William Zabka), o adversário de Daniel LaRusso (Ralph Macchio) no primeiro Karatê Kid. Foi um grande sucesso a ponto de Cobra Kai ter tido não uma, não duas, mas nada menos do que seis temporadas e 65 episódios entre 2018 e 2025, todas elas, por incrível que pareça, mantendo sua qualidade mesmo apoiando-se fortemente na nostalgia e na breguice explícita. E eis que, embalado pelo sucesso da série e no mesmo ano de seu final, a franquia retorna aos cinemas com Karate Kid: Lendas, um filme que mostra em seu cartaz o Shifu Han (Jackie Chan) do remake ao lado de Sensei LaRusso com um novo pupilo.
O cartaz, vale dizer, era tudo o que sabia do filme e, confesso, quando ele começou a surgir por aí, achei que era só alguma I.A. pregando uma peça, que não havia filme algum. Mas há e… ele é uma gratíssima surpresa como foi Cobra Kai. Não é de nem de longe um longa que traz grandes novidades ao espectador. Na verdade, de maneira muito semelhante a O Despertar da Força, que basicamente refez a obra de 1977, a produção joga seguro usando como estrutura base o filme original de 1984, com um jovem que se muda com a mãe da China para os EUA, encontra uma garota que gosta e que tem um namorado que luta caratê e que, claro, faz bullying com ele. Troquem o cenário da Califórnia para Manhattan e pronto, temos Karate: Lendas. No entanto, não deixem minha descrição esmorecer seu interesse pelo longa, pois ele tem características próprias que o torna um experimento interessante e muito agradável que, por mais incrível que possa parecer, não usa a nostalgia como muleta narrativa, pelo menos não da maneira como poderia usar, algo raro hoje em dia. Sim, o Sr. Han e Daniel LaRusso estão no filme, mas as participações deles são diminutas – é até possível dizer que o cartaz que descrevi é enganoso -, apesar de relevantes, pois o roteiro de Rob Lieber tem o cuidado de criar uma história própria para Li Fong (Ben Wang, que protagonizou a ótima, mas infelizmente ignorada série A Jornada de Jin Wang), criando um drama pessoal relacionado com a morte de seu irmão e, também, uma narrativa que dá bom estofo ao começo de seu relacionamento com Mia (Sadie Stanley) e seu pai e ex-boxeador Victor (Joshua Jackson). Em outras palavras, o foco é em Li Fong tentando reconstruir sua vida em Nova York e lidando com os percalços de praxe em um filme assim que, claro, envolve o carateca valentão e violento Connor (Aramis Knight), campeão dos Cinco Bairros e ex-namorado de Mia.
Mais do que isso, Lendas reúne mitologias ao primeiro estabelecer que Karate Kid de 2010 não é um remake, mas sim um longa cujos eventos aconteceram no mesmo universo da franquia principal e, depois, ao deixar bem clara a conexão entre a família Miyagi e a família Han, como dois galhos de uma mesma árvore, mantra repetido uma certa quantidade de vezes na meia hora final. Lieber usa uma marreta roteirística para tornar isso possível, não tenham dúvida, mas não faz mal algum no final das contas e permite que aquela estranheza de haver um filme “separado” com o selo Karate Kid em que a arte marcial é o kung-fu seja atenuada, além de promover o encontro entre mestres e, dependendo do sucesso da obra, tornar possível outros filmes, tudo o que Hollywood mais deseja. Mesmo que eu não nunca tenha apreciado muito os malabarismos exagerados e cômicos de Jackie Chan e considere Ralph Macchio não só um ator muito fraco, como completamente incapaz, em sua meia-idade, de fazer parecer em tela que ele sabe alguma coisa de caratê (e ele sabe pois, pelo que pesquisei, alcançou a faixa preta em 2025), é inegável que vê-los juntos pelos poucos minutos em que isso acontece tem um sabor agradável e toca todas as teclas mnemônicas e emocionais que devia tocar, com a direção de Jonathan Entwistle, em seu primeiro longa, fazendo questão de ticar todos os itens do Formulário de Manipulação Barata da Audiência.
Sendo justo, porém, Entwistle mostra-se mais do que apenas um ticador de formulários, pois ele consegue dirigir sequências de ação muito boas, ainda que um tanto quanto caóticas pela escolha da produção em fazer um filme curto que comprime o inevitável campeonato em praticamente 15 minutos ao final, com o jovem Ben Wang mostrando-se muito bem em cena seja nas sequências dramáticas, seja na pancadaria, certamente muito superior em basicamente tudo se comparado com o que Macchio ou Zabka jamais foram capazes na franquia que estrelaram (Zabka, porém, compensa no carisma, algo que Macchio também não tem). Falando nessa compressão temporal, eu a vejo tanto como um aspecto negativo, quanto positivo. Negativo pela compressão em si, que retira tempo das lutas, mas positivo porque o tempo sem lutas é empregado com uma ótima cadência pelo diretor para fazer o espectador realmente se importar pelos personagens, especialmente Li Fong, Mia e Victor, com a trinca de atores mais do que correspondendo. Vale destaque, também, para a sempre arrebatadora Ming-Na Wen como a mãe de Li Fong, mesmo que sua participação também seja reduzida como as dos grandes chamarizes do longa.
Karate Kid: Lendas é um filme básico bem feito (algo cada vez mais raro) que, como o primeiro, tem bom coração e foi feito muito claramente com doses generosas de carinho em uma tentativa de dar uma espécie de partida a frio à franquia nos cinemas. Ben Wang convence como um novo “garoto do caratê” – que é mais garoto do kung-fu como o anterior, mas, aqui, com uma lógica que sustenta o título -, a construção de uma nova mitologia, mesmo que simples e galgada na obra original, e o uso parcimonioso de Chan e Macchio, além das possibilidades de efetiva fusão com o material recauchutado de Cobra Kai, tem o seu valor e, pelo menos no que me diz respeito, faz por merecer. Resta apenas saber se ainda há espaço, nos cinemas, para o retorno de mais uma franquia de outrora.
Karate Kid: Lendas (Karate Kid: Legends – EUA, 2025)
Direção: Jonathan Entwistle
Roteiro: Rob Lieber (baseado em personagens criados por Robert Mark Kamen)
Elenco: Jackie Chan, Ralph Macchio, Ben Wang, Joshua Jackson, Sadie Stanley, Ming-Na Wen, Aramis Knight, Wyatt Oleff, Shaunette Renée Wilson, Jennifer-Lyn Christie, William Zabka
Duração: 94 min.