Home FilmesCríticas Crítica | Kate (2021)

Crítica | Kate (2021)

por Iann Jeliel
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Kate

Kate é mais um exemplar da Netflix que tenta criar um John Wick para chamar de seu. A inspiração, ou no mínimo, o desejo de alcançar a trilogia dirigida pelo coordenador de dublês de Matrix, Chad Stahelski, é tão nítida que não só o título é também o nome da protagonista “exército de um homem (nesse caso, mulher) só” da vez, como é passada num universo recreativo às primeiras inspirações das irmãs Wachowski quando propuseram uma revolução do cinema de ação na década de 90, no caso, os animes cyberpunks e os filmes de ação de Hong Kong dominantes à época.

Kate até parece um longa encomendado por algoritmo, reunindo os ciclos de transformação realizados nesse cinema de lá para cá em um conglomerado genérico dessas referências modernizadas. No entanto, como qualquer bom filme de ação ou vingança, existem particularidades, resquícios de autoria do diretor Cedric Nicolas-Troyan – aparentemente é mais um desses diretores de estúdio, só que não tão fraco assim – trabalhando certos elementos isolados para conquistar uma experiência estimulante de momento. O ponto mais interessante, sem dúvidas, é a ideia da degradação da protagonista conforme o enredo, que não só parte de hematomas e feridas conquistadas nas linhas de combate como também do efeito da radiação a que ela é exposta, tornando seu corpo cada vez mais frágil e limitado, enquanto teoricamente os desafios vão se tornando maiores em sua missão.

O fato de ela ser mulher também ajuda a trazer um refresco ao filme, por mais que hoje não seja raro se deparar com uma protagonizando um filme de ação – ainda bem –, Kate parece ter sido tirada dos anos oitenta, quando se começava a colocar as mulheres nesses papéis, de certo modo, ainda masculinizadas, para resolverem tudo como os brucutus da época, na mão, no braço, no físico. Seu lado de assassina de aluguel não tem elementos de espionagem que a façam utilizar-se da sensualidade de uma femme fatale para sair de encrencas ou ser uma arma a seu favor. Ela encara todos os desafios de frente, mas a superação acaba vindo da técnica em artes marciais e da capacidade objetiva de matar, e nem tanto da capacidade física, o que acaba distanciando um pouco desse rótulo masculinizado, embora seja refletido no que é colocado como arquétipo do novo brucutu masculino – tal como John Wick, nem de longe forte como Stallone ou Schwarzenegger da vida, mas coloca tanto medo quanto, pela efetividade.

Mary Elizabeth Winstead se sai muito bem nessa atuação de ampla exigência corpórea, dando bastante carisma à personagem sobre os mesmos moldes de sua principal referência, uma empatia vinda do “impressionar” com sua persona badass capaz de resolver qualquer situação, com o adendo das adversidades limitadoras. Através disso, o filme força uma conexão bastante vistosa com a criança sidekick, Ani (Miku Martineau), que a acompanha em parte da jornada. Além da mirim ser igualmente carismática, elas possuem muita química juntas na hora da ação, gerando um contraste de leveza eficiente em contraponto e tensão criadas pelas circunstâncias da premissa. Pelo menos nos dois primeiros atos, o filme consegue se sustentar muito bem numa progressão objetiva das sequências de adrenalina, dirigidas pela ótima coreografia, valorizadas em plano aberto – que consequentemente valorizam a ambientação néon de ampla vivacidade nos arredores dos acontecimentos –, mas ainda filmadas em momentos pontuais com aproximação e tremelique, puxando a urgência da urbanização nos moldes Jason Bourne.

Os problemas ficam no terço final, em que o roteiro cai em algumas armadilhas. A mais óbvia é que o pico de degradação da personagem não bate em soluções plausíveis para um último clímax na ação, então a trama começa a se levar para um lado mais dramático que só poderia ser correspondido por algo relacionado à mínima motivação antes colocada. Como o filme não queria perder força, acaba apelando para uma virada de valores entre certas figuras completamente telegrafável. Tudo bem ser previsível, mas é ruim, não só por isso. É aquilo, estamos diante de uma “heroína” estadunidense em outra cultura, matando geral de lá como vilões, ou seja, a acusação do whitewashing fica ali circundando. Só que, honestamente, o caráter pessoal da narrativa em um contexto que claramente é voltado ao universo da máfia – os inimigos de maneira geral não foram estereotipados, mesmo sem motivação não maniqueísta até o terço final, visualmente não foram – já o desviava desse rótulo.

Não era necessário entrar em méritos ou deméritos de divergências ideológicas entre nacionalidades, ainda que não tenha saído do contexto do mundo da máfia e das motivações pessoais dadas na história, Kate enquanto proposta não tinha substância para efetivar esse debate, especialmente numa conclusão, e nem tinha por que fazer isso. Já havia plus de identidade que só não foi maior porque se buscou esse plus dramatúrgico completamente mal articulado. De todo modo, Kate ainda é um filme divertido, especialmente levando em conta a competência da execução dos elementos do gênero ao qual pertence.

Kate (Idem | EUA, 2021)
Direção: Cedric Nicolas-Troyan
Roteiro: Umair Aleem
Elenco: Mary Elizabeth Winstead, Woody Harrelson, Miku Patricia Martineau, Tadanobu Asano, Jun Kunimura, Michiel Huisman, Miyavi Miyavi, Mari Yamamoto, Hirotaka Renge, Kazuya Tanabe, Cindy Sirinya Bishop, Amelia Crouch, Ava Caryofyllis, Gemma Brooke Allen
Duração: 106 minutos

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