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Crítica | “KicK iii” – Arca

Uma conturbada jornada de autoaceitação.

por Iann Jeliel
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I’m feeling so hot from the inside out
I tend to twist and shout

Confesso que carregava um conceito pré-concebido de música eletrônica como estilo. Pensava que o digital na música devia ser um recurso e não um gênero propriamente, pois, no momento em que as vozes e os instrumentos se tornam primordialmente “autotunizadas”, perde-se a humanidade da música, consequentemente, seu sentido enquanto arte. Felizmente, ao ser apresentado a Arca, por meu companheiro de crítica Matheus Camargo, pude descobrir uma nova forma de enxergar os benefícios do eletrônico para além de um recurso para a potencialização de performances e/ou estilizador de ritmo nas batidas instrumentais, vislumbrando a legitimidade da sonoridade totalmente digital como manifestação artística amplamente comunicadora.

Em sua saga de cinco discos denominada Kick, a compositora venezuelana cria um universo mental muito próprio, subjetivo e diversificado. O projeto experimental segue um compasso estilístico muito semelhante, ao distorcer sons e vozes em ruídos incômodos, retalhos de uma alma perturbada existencialmente e que busca aceitar sua natureza. Há uma pessoalidade uniforme do eu-lírico durante todos esses álbuns que conversam tematicamente com esse prisma de aceitação, seja para uma vertente de identidade sexual (enfatizada em Kick I) ou de ancestralidade cultural (predominante em Kick II). O terceiro capítulo, no entanto, se diferencia dos demais que costumam transitar labiriticamente entre esses temas de sonoridade não convencional com outra mais pop acessível, para comunicar as incertezas sentimentais do eu-lírico, elaborando uma sequência mais coerente, não tão aleatória ou imprevisível como nos dois primeiros Kicks, sendo crescentemente dissociável para evidenciar as etapas dessa jornada de autoaceitação.

Uma aceitação que não parece ser inicialmente possível ou verdadeira. A sequência de Bruja a Feira, que corresponde ao “primeiro ato” dessa narrativa mental, traz canções extremamente carregadas, fragmentadas, entregando as mais desagradáveis ao ouvido logo de cara, propositadamente. Kick III começa perdido na urgência do caos representado em forma pelos sintetizadores desregulados com diversas quebras de grave, sobrepostas umas às outras e que encenam para ansiedade e angústia. Por mais que as líricas carreguem um tom esnobe nas estrofes, as organizações das rimas no instrumental bagunçado comunicam que as afirmações vaidosas das letras partem de um pretexto reativo de autodefesa do eu-lírico. Há um reconhecimento dessa personalidade anárquica em Incendio, o grande destaque desse primeiro terço desafiador do disco, ao promover uma atmosfera ritualística interessantíssima na fusão das irregulares colisões entre os efeitos.

De Skullqueen a Rubberneck, Kick III instrumentalmente começa a diminuir a mão na deturpação dos elementos e a personalidade onírica adentra a um território mais questionador do que afirmador. Este “segundo ato” reflete uma conscientização do estado emocional instável do eu-lírico que passa a instaurar a liberdade que tanto deseja na prática, desapegando das amarguras que carrega acerca dos dogmas que lhe foram designados. Destaque nesse período para Electra Rex, que pega o conceito freudiano do Complexo do Édipo em choque com o seu conceito-irmão na psicanalise, vulgo Complexo de Electra, para aplicar uma reflexão provocativa acerca da visão conceitual distorcida popularmente do gênero não-binário. Não à toa, a canção funciona como uma espécie de clímax ao “Lado A” mais ofegante e manipulativo do disco.

As músicas do “Lado B” já se caracterizam por um eletrônico mais agradável e pop de sonoridade. As letras ainda seguem um vocabulário rebelde, com forte conotação sexual, mas numa transição de realidade, já desapegada, com aceitação corporal e identitária do eu-lírico. A partir de Señorita, onde se inicia o “terceiro ato” da peça, as músicas soam “instrumentalmente” mais polidas, onde as justaposições dos efeitos digitais seguem uma lógica retilínea e apaziguante, quase como um ASMR. Destaque para as relaxantes Intimate Flesh e Joya, finalizando a jornada com a aceitação íntima e acolhedora da própria identidade. Um fechamento conciso, mas ainda deixa pontas em aberto para os próximos capítulos Kick IIII e Kick IIIII (lançados em sequência depois deste), que exploram as nuances desse lado introspectivo do eu-lírico inaugurado.

Apesar de ser sonoramente desagradável, verdadeiramente desafiador de ser ouvido em sequência, Kick III (e o projeto Kick como um todo) é uma obra conceitual e sensorialmente rica. Uma narrativa metamórfica, psicodélica, musicalmente decrescente em intensidade, indo da caótica a melancolia meditativa para passar um recado esperançoso em meio a tempos sombrios, que também são tempos de luta, de uma luta de afirmação de identidade, que, felizmente, nunca esteve com seu discurso tão forte.

Aumenta!: Incendio
Diminui!:
 Ripples
Minha Canção Favorita do álbum!: Intimate Flesh

KicK iii
Artista: Arca
País: Estados Unidos
Lançamento: 1 de dezembro de 2021
Gravadora: XL
Estilo: Experimental, Pop, Eletrônico

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