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Crítica | Kimi: Alguém Está Escutando

Alguém está explicando demais...

por Ritter Fan
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Sempre quando alguém cita a previsibilidade de uma trama como algo negativo, sou o primeiro a afirmar que, na maioria das vezes, previsibilidade, ao contrário, significa que a obra segue uma boa lógica interna que torna possível acertar o que vai acontecer e que seu autor não tirou um coelho da cartola no último segundo para pegar todo mundo de surpresa, com aquela reviravolta sem sentido nos segundos finais. Mas existem filmes previsíveis e filmes previsíveis. Na primeira categoria, entram os longas que mencionei, que prezam pela construção narrativa que naturalmente levam à consequência esperada. Na segunda categoria, entram filmes como Kimi: Alguém Está Escutando, que tiram toda e qualquer camada de desafio ao espectador e entregam tudo de mão beijada já nos primeiros minutos.

Em sua mais nova obra, Steven Soderbergh inspira-se em Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock,  e também em Blow-Up – Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni, mas retirando-lhes tudo o que os faz especiais e atualizando a premissa para o século XXI, o que significa, basicamente, despejar tecnologia e, claro, falar da pandemia, para desenvolver uma narrativa quase que totalmente em espaço confinado. Zoë Kravitz vive Angela Childs, analista de fluxo de dados de cabelo azul e cara de poucos amigos que sofre de ansiedade e agorafobia e que, durante seu trabalho remoto para uma empresa prestes a fazer oferta pública de ações que desenvolveu um produto chamado Kimi, basicamente uma Alexa da vida, só que com uma camada humana por trás, descobre o que pode ser o áudio de um crime.

O roteiro de David Koepp é enxuto, não desperdiçando palavras, mas, mesmo assim, falta sutileza, pois todo o estabelecimento daquilo que precisamos saber para que a história consiga chegar a seu encerramento é marretado goela abaixo do espectador na primeira meia hora, com Soderbergh não se preocupando em suavizar absolutamente nada. Esse terço inicial, portanto, parece uma lista de compras, por exemplo o estabelecimento de que há um sujeito que observa Angela da janela do outro prédio, ou que ela se vale de um colega técnico romeno para questões mais complexas, que ela tem um armário onde estão todos os seus aparelhos e seu servidor, que o vizinho de cima está fazendo reforma, que sua mãe liga à hora que quer e assim por diante. Quando o último elemento visual é “ticado” na lista, a história então começa, encaixando cada um deles da maneira mais óbvia e didática possível, até porque só há uma forma de encaixe dessas variáveis tão simplistas, fazendo com que cada passo e cada desenvolvimento seja detalhadamente telegrafado.

Em outras palavras, o andar da história não decorre de um fluxo narrativo coeso, mas sim de bullet points que são projetados na tela como professores menos inspirados fazem em seus slides em sala de aula, tendo, ainda, a desfaçatez de repetir oralmente exatamente o que está escrito logo atrás. Soderbergh até perde a oportunidade de trabalhar apenas sonoramente o clipe de áudio que leva à descoberta de áudio, sobreponto tenebrosas imagens para ele ter certeza de que o espectador entendeu tudo… E, claro, temos toda aquela conversinha cheia de tecnobaboseiras para dar aquela roupagem modernosa, máscaras e álcool gel sendo mostrados, além de COVID sendo mencionada uma única vez para estabelecer temporalmente o longa e, finalmente, uma lição subjacente sobre a inexistência de algo chamado privacidade que é tão rasteira e simplista que chega a ser cômica.

Angela, apesar de reinar na tela pela integralidade da duração do longa, surpreendentemente não ganha desenvolvimento algum a não ser um estalar de dedos mágico que altera radicalmente seu status quo no epílogo róseo. E, nessa brincadeira, só resta a Kravitz fazer cara de sofrida, de triste, de enfezada e variações disso sempre emoldurada por suas madeixas azuis que, em combinação com seu casaco laranja que ela usa a partir de certo ponto, parece uma brincadeira de mau gosto de Soderbergh, ainda que, em termos estéticos, ele acerte com o apartamento de planta aberta, estilo loft, em que Angela mora. É só uma pena que ele não use todo o potencial do cenário, porém.

Mas o cineasta acerta em cheio em um aspecto: ritmo. Kimi: Alguém Está Escutando é um longa-metragem que sabe exatamente o que precisa mostrar e por quanto tempo precisa mostrar para manter a atenção do espectador sempre no nível mais alto. E isso é em boa parte mérito de Koepp, por escrever um roteiro que, como disse, não tem uma palavra além do estritamente essencial, mas a regência da obra por Soderbergh é que realmente faz tudo se encaixar à perfeição. Dá até para imaginar um metrônomo sendo usado para marcar os tempos de cada sequência tamanha é a ciência do diretor por trás desse aspecto do longa.

Mesmo que a sequência final de ação possa ser reputada como conveniente e fácil demais – e é mesmo -, tudo caminha compassadamente, sem que vejamos mais ou menos do que aquilo que as cenas precisam para funcionar, o que, casado com as obviedades narrativas e visuais, torna Kimi um filme de fácil consumo. Como não sentimos o tempo passar e como não precisamos pensar por um segundo sequer, a obra funciona como fast food: satisfaz momentaneamente alimentando-nos essencialmente de calorias vazias de nutrientes. E o resultado disso tudo é previsível como o próprio filme, pois logo esquecemos o que acabamos de comer e continuamos com fome, mas dessa vez – espera-se – de algo com um pouco mais de substância…

Kimi: Alguém Está Escutando (Kimi – EUA, 10 de fevereiro de 2022)
Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: David Koepp
Elenco: Zoë Kravitz, Betsy Brantley, Rita Wilson, India de Beaufort, Emily Kuroda, Byron Bowers, Alex Dobrenko, Jaime Camil, Jacob Vargas, Derek DelGaudio, Erika Christensen, Devin Ratray, Andy Daly, Robin Givens, Charles Halford, David Wain, Caleb Emery
Duração: 89 min.

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