Em uma pausa na produção de Drácula (2025), Radu Jude resolveu filmar um roteiro que havia concebido há pouco tempo, apenas como nuance de uma história possivelmente maior sobre crise imobiliária, gentrificação (notem como ele faz questão de repetir planos fixos pela cidade, tanto de prédios históricos quanto de espaços em construção) e uma crise econômica que ganha máscaras novas desde o fim da Guerra Fria, quando não há mais um “grande inimigo vermelho” para culpar, mas o seu fantasma consegue ocultar a verdadeira causa dos horrores econômicos, trabalhistas e institucionais em vigor. Filmado com um iPhone 15 num período de 10 dias, sem equipamento regular de cinema e equipe muitíssimo reduzida, Kontinental ’25 é inspirado em dois aspectos centrais de Europa ’51, de Rossellini: a culpa após uma morte e a busca da protagonista por redenção.
É claro que, para o diretor romeno, esta não é uma jornada fácil. Seu roteiro é escrito no modelo efeito dominó, virando a vida de Orsolya (Eszter Tompa) de ponta cabeça após um acontecimento inesperado com um sem-teto que ela precisa acompanhar durante uma ação de despejo. Ion (Gabriel Spahiu), o homem em questão, é um ex-atleta laureado na Romênia, mas agora vive em desgraça, no álcool e na mendicância, vítima de maus investimentos e falta de perspectiva após os seus anos de ouro. É possível perceber que, desde o início, o diretor comunica estranhezas, deslocamentos e justificativas críticas. O sistema que permitiu a derrocada de Ion tem, agora, uma funcionária empática que faz de tudo para que o processo de despejo seja humanizado, dando o tempo que o ex-atleta precisa para organizar seus pertences e promessas de realocação num lugar propício. Essa tendência a uma caridade compensatória é retomada mais tarde no filme, quase em tom de piada, quando ações de ajuda a necessitados de locais em conflito (Gaza e Ucrânia são citados) viram assunto de uma conversa.
O acompanhamento dos dias de Orsolya após o incidente escancara a veia cômica e irônica do diretor. Assistimos ao mesmo relato da morte virar uma tragédia banal, uma anedota macabra cotidiana, quando a oficial de justiça repete a história para seu marido, amiga, mãe, ex-aluno e padre, recebendo diferentes formas de consolo e reafirmando a própria inocência diante da situação: “legalmente, eu não tive culpa, mas…“. Radu Jude não pinta a protagonista como uma pessoa ruim. Mas ele utiliza o seu trabalho para convidar à reflexão de como pessoas bem-intencionadas trabalham como braço executor de um Estado ou de empresas que seguem interesses nada humanitários, aproximando-se das discussões mais pesadas sobre a obediência cega a ordens e suas consequências. Isso também é acompanhado, no mundo exterior, pelo cadáver arquitetônico de Cluj, a segunda maior cidade da Romênia, que passa por uma grande transformação — quase como se quisesse apagar as características da Era Socialista e abrisse as portas para novidades imobiliárias luxuosas e populares (há até mesmo um parque cheio de dinossauros) enquanto pessoas simplesmente não têm onde morar.
Não há como fugir do progresso e da nova etapa material e ideológica que o capitalismo traz para o microcosmo de uma tragédia que pode muito bem ser extrapolada para um nível nacional, tanto nesse exato tema, quanto em diversos outros. Orsolya é vítima, mas também se faz de vítima: exagera seu lamento, clama por comiseração e tem suas bolhas de desonestidade, como se vê no encontro com um antigo aluno. O mundo retratado por Jude é onde “coisas ruins acontecem o tempo inteiro” e, por mais que crises íntimas costurem alguns dias após a tragédia, não há tempo a perder: a vida, o trabalho, os robôs nas ruas, a xenofobia (também destacada no embate entre húngaros e romenos pela posse da Transilvânia), o fascismo de Orban, a autocracia de Putin, as referências culturais de Star Wars a Dias Perfeitos e a religiosidade como salvaguarda precisam continuar. Os diálogos, aqui, não possuem significado transformador. Eles são um acúmulo de choradeira e conformidade com a rotina, fazendo do sem-teto um ícone necessário para o funcionamento de tudo, seja em sua miséria, seja no vazio deixado por sua morte.
O sofrimento performático de Orsolya continuará. A morte administrativa de Ion será uma dentre muitas outras. O hotel será construído. Cluj será destruída e reconstruída. A culpa, a caridade, a tecnologia e as novas ideias (boas e ruins) se espalharão pela Romênia, Pela Hungria, pela União Europeia… Nada vai mudar com a vinda do tal Kontinental ’25. Porque o possível “futuro ruim” que talvez se esperasse, com isso, não vai chegar arrasando tudo pelo caminho. Ele já está presente. Muitos é que ainda não perceberam.
Kontinental ’25 (Romênia, Suíça, Luxemburgo, Brasil, Reino Unido, 2025)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude
Elenco: Eszter Tompa, Annamária Biluska, Marius Damian, Ilinca Manolache, Oana Mardare, Serban Pavlu, Adrian Sitaru, Gabriel Spahiu, Adonis Tanta
Duração: 109 min.