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Crítica | Kurika, de Henrique Galvão

por Leonardo Campos
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A presença de animais selvagens em narrativas ficcionais fascina a humanidade há eras. Nas artes plásticas, no teatro, na literatura e nos ritos religiosos. Nos poemas de Homero, por exemplo, animais e seus híbridos são colocados como desafios para Odisseu e sua busca por retorno ao lar, em Ítaca, após a longa e mitológica Guerra de Troia. Na lista de criaturas do bestiário da expansão marítima europeia, em especial, Os Lusíadas, inspirado em traços da poesia grega mencionada, outros animais surgem, naturais ou transformados em monstros para fazer os personagens de tais exposições poéticas purgarem horrores pela sobrevivência. Mais adiante, a baleia descrita por Melville em Moby Dick demonstra o poder da figuração animal como metáfora humana, espécie de duplo, uma extensão dos seres humanos. A vingança, neste caso é o tema. E dentre tantos outros, temos os romances de Henrique Galvão. O nosso foco aqui é Kurika, a saga de um leão e uma macaca que acompanha tais seres desde os seus primeiros anos de existência à fase adulta.

A lista de aventuras, devo dizer, é enorme. Ler Kurika é estar diante da intersecção entre a humanidade e natureza selvagem. Em meio ao cenário com personagens que ganhariam espaço em seu universo literário posterior, isto é, o romance Impala, o escritor Henrique Galvão desenvolve uma história de amizade entre um leão e uma macaca, criaturas que em diversos pontos da publicação, agem por meio de posturas antropomórficas, numa narrativa envolvente, não voltada apenas para crianças, mas para o público geral. Em sua representação “fantástica” de temas da vida real, o romance é protagonizado por um leão capturado por Conceição, um colonizador branco que encarcera o animal e o torna parte de seu cotidiano. Semelhante aos demais bichos do segmento, o felino vai passar por situações de subjugação, teste de seus instintos, desejo de liberdade e uma alegórica amizade com a macaca Paulina, responsável por libertá-lo do longo trecho de vida aprisionada. É uma jornada de muita beleza com potencial de ser mais interessante e acessível se tivesse um ritmo mais dinâmico, até mesmo para se adequar ao público atual.

Cabe ressaltar que conforme os depoimentos e registros biográficos de Henrique Galvão, os animais que se postam como personagens são baseados em criaturas reais, oriundos de uma história semelhante de caça, domesticação e fuga, tal como o romance. Aos 21 meses, Kurika e Paulina fogem. Atravessam um rio, percurso bastante simbólico, e experimentam a liberdade que fica no limiar entre a casa dos seus donos e a floresta. Com toques da fábula de Esopo sobre um cão e um lobo, os animais aqui são positivos, altruístas, diferente dos seres humanos, representados com negatividade, questionáveis em suas posturas. A vida pitoresca dos colonizadores é retratada com opacidade, haja vista o foco, isto é, um leão que precisa domar os seus instintos naturais diante da necessidade de domesticação, negada na busca por liberdade já abordada em suas pequenas idas à floresta para uma breve contemplação de seu destino.

Kurika é o animal que centraliza os conflitos do romance. Dominante conforme o legado de sua imagem na cultura popular, na aventura de Henrique Galvão, ele se encontra diante dos privilégios humanos em meio aos recursos naturais, numa intervenção que deixa clara a mensagem de aniquilação da vida animal em prol do divertimento e das necessidades do homem face ao seu conceito quase nunca equilibrado de desenvolvimento. A obra é o ponto de partida da sua Trilogia dos Bichos do Mato, iniciada com a aventura do leão em 1944, continuada em Impala e O Homem e o Tigre: Vagô, conjunto de histórias sobre a vida animal em paralelo aos desdobramentos das necessidades humanas dos personagens que habitam a seara da chamada civilização. Ao acompanhar as suas glórias e derrotas do herói, Kurika se revela um misto de fábula com a extensão narrativa do gênero romance, mais denso e amplo em suas dimensões.

Ao longo de suas 196 páginas, a trajetória de Kurika e Paulina, diagramadas pela editoração do grupo Cotovia, em 2008, tendo como base a edição de 1944, Henrique Galvão nos apresenta o estilo de escrito próprio da literatura colonial e seus olhares viciados, conforme o que se escrevia e pensava na época, algo que no discurso mais reflexivo de hoje, bem como mais antenado por questões ecológicas, pede o olhar diacrônico do leitor, para que a narrativa seja consumida como entretenimento sem a sensação de perplexidade e ojeriza de uma possível postura de cancelamento da obra, sem considerar seu autor e contexto de realização. Ao alegorizar o cotidiano dos humanos que aparecem bem pouco e expor a paisagem, com sua fauna e flora, por meio do exotismo, Galvão promove a idealização do homem e da natureza, da fera e da terra. O roubo do mel e a punição com as ferroadas das abelhas é pura metáfora da ação-reação-consequência, discutida no bojo das relações humanas.

Kurika (Angola, 1944)
Autor: Henrique Galvão
Editora no Brasil: Cotovia (2008)
Páginas: 200

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