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Crítica | Laboratório de Incertezas, de Wesley Correia

Estrutura lírica competente e reflexões contextuais.

por Leonardo Campos
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Tempo corrido. Funções acumuladas. Demandas da massacrante máquina capitalista. Dispersão diante das redes sociais. Inchaço intelectual ao precisar processar tantas informações que nos bombardeiam diariamente. Diante do exposto, eis o questionamento: onde fica o espaço para a poesia em nosso cotidiano? Não digo o lirismo em excerto, postado por tanta gente, nos status do WhatsApp ou no vertiginoso direct do Instagram. Estou falando aqui de leitura literária, a poesia dos livros, impressos ou eletrônicos, dos blogs especializados, dentre outros espaços dedicados ao fazer poético. No ritmo que seguimos, onde a leitura de conteúdos que não sejam tutoriais ou legendas explicativas para imagens que já explicitam tudo que precisa ser dito, me coloco na posição de licenciado em Letras e me questiono: onde encaixar poesia numa era de tantas fragilidades e incertezas? Eu aqui escrevo e levanto tais indagações, caro leitor, mas não estou isento da obrigação de repensar estes pontos. Em linhas gerais, onde está a poesia em minha vida?

Laboratório de Incertezas, coletânea do poeta e professor Wesley Correia, é uma obra que congrega poesia e reflexão, unindo textos publicados entre 2006 e 2019 e outros inéditos. E, o primeiro exemplar do gênero lírico lido desde que tive dias mais livres quando vivenciamos uma famigerada pandemia em 2020, que se desdobrou por alguns anos posteriores. De lá pra cá muitas crônicas, contos, romances, filmes, séries, mas nenhum espaço para a poesia, um gênero considerado mais distante de minhas práticas, menos prático diante da educação literária, comparado ao tom didático de algumas composições de outros gêneros literários. O livro, lançado pela Editora Malê e com sua diagramação acertada por Mauro Siqueira, utiliza uma capa simples, mas significativa, criada por Bruno Francisco Pimentel, que, à primeira vista, já intriga e convida à leitura. O ato, no entanto, levou mais de um ano para se concretizar depois que o livro foi adquirido. Mas, como se diz no popular, antes tarde do que nunca. Há temos não lia algo tão arrebatador, que me fez rir, lacrimejar, refletir e retomar o interesse perdido pelo consumo de poesia como prática de leitura em minha agenda.

Wesley Correia, nascido em Cruz das Almas, interior da Bahia, desde jovem se destacou pela capacidade de transformar as experiências do cotidiano em poesia. E é isso que nos aguarda nas 148 páginas dessa coletânea. A estrutura do livro, com os títulos organizados de forma decrescente, começando por Laboratório de Incertezas, seguido por Íntimo Vesúvio, Deus é Negro e Pausa para um Beijo, cria uma sensação de uma jornada temporal, onde a evolução do pensamento e da estética de Correia se torna palpável. Desde a epígrafe que abre a obra, onde se destaca o poema “Quem sou eu?” de Luiz Gama, o autor estabelece um tom provocador e reflexivo. A escolha desse poema não é acidental, pois evoca um questionamento sobre identidade e a natureza das certezas que nos cercam. Ao colocar essa pergunta no centro do debate, Correia nos convida a explorar nossa própria identidade e a relação que temos com a incerteza. Tal relação é desenvolvida ao longo do livro, onde o autor nos leva a questionar não apenas as verdades que acreditamos inabaláveis, mas também os medos e anseios que frequentemente nos cercam.

Aqui, ao longo desta breve análise, agradeço ao autor por me devolver o interesse pela arte da poesia, alijada dos meus interesses pessoais e profissionais. Nosso primeiro e único contato, oriundo de uma experiência não necessariamente negativa, mas decepcionante, não foi suficiente para me fazer distorcer alguns valores éticos e renegar o seu talento. Na ocasião, tentei contato com o poeta para uma entrevista, pedido oriundo do meu interesse em melhor gestar reflexões sobre o seu livro Laboratório de Incertezas, tendo em vista compor conteúdos didáticos para estudantes menos privilegiados em nosso sistema de ensino. Tal como o título de sua publicação, o autor foi educado e deixou delineado que as perguntas podiam ser enviadas, mas não havia certeza se seriam respondidas. Foi uma das jornadas mais irônicas de minha experiência em educação literária. Preferi não ficar diante das incertezas e, assim, continuar o projeto interpretando o livro sem uma aproximação mais íntima com o autor. Coisas da vida. Uma coisa é a arte, outra o artista, afinal, ao longo da leitura, a aceitação da incerteza, proposta como uma forma de vivência plena, é algo que nos desafia enquanto leitores, a ver a dúvida não como um obstáculo, mas como um espaço fértil para o crescimento pessoal e a reflexão crítica.

No contexto atual, marcado por polarizações, fake news e narrativas distorcidas, a proposta de Correia ganha ainda mais relevância. O mundo atravessa um momento em que as certezas estão sendo continuamente questionadas e a verdade se torna um conceito flexível. Tudo muda muito mais rapidamente que antes. Se a geração modernista vivenciou transformações consideradas dinâmicas, nós quadriplicamos essa realidade. Nessa realidade, o convite de Correia para aceitarmos a incerteza como parte da nossa experiência diária ressoa como um manifesto de resistência e liberdade. Ao propor que as nossas dúvidas podem ser tão definidoras quanto nossas convicções, o autor nos encoraja a abraçar a complexidade da vida. As emoções que perpassam suas páginas exploram as fragilidades e os desafios que encontramos ao tentarmos nos adaptar a um mundo em constante transformação. A força com que essas emoções se manifestam garante que o leitor não apenas compreenda, mas sinta o que é discutir a incerteza de forma visceral.

A leitura de Laboratório de Incertezas torna-se, assim, uma experiência não apenas intelectual, mas profundamente emocional. Durante a imersão na obra, é impossível não se identificar com as composições poéticas de Correia. As angústias, os anseios e as alegrias compartilhadas pelo autor tocam diretamente o leitor, promovendo uma reflexão íntima sobre seus próprios pensamentos e sentimentos. O autor, que já é reconhecido por sua habilidade em captar as nuances do cotidiano, vai além ao expor suas vulnerabilidades e inseguranças. Essa abordagem não só humaniza sua escrita, mas também cria uma conexão direta com o público, mostrando que o espaço da incerteza pode, de fato, ser um laboratório de descobertas e experiências enriquecedoras. Em suma, Wesley Correia, com sua coletânea, não só nos leva a refletir profundamente sobre a natureza das incertezas, mas também nos convida a celebrar a vida em sua totalidade, com suas dúvidas e seus questionamentos.

Ademais, depois de terminar a leitura, pude refletir como a literatura se configura como um importante meio de manifestação e expressão. Desta forma, a literatura torna-se um espaço vital para abordar questões contemporâneas e promover o diálogo sobre diversidade. Acessível para diversos públicos, Laboratório de Incertezas oferece uma oportunidade singular para os leitores, reunindo em uma única obra, poemas de edições esgotadas, revisados pelo autor. O lançamento dessa publicação em parceria com a editora Malê, comprometida com a valorização da literatura de autoria negra, celebra a importância de dar voz a narrativas diversas, reforçando o papel da literatura como um espaço inclusivo e representativo. A literatura, em suas diversas formas, possui um papel fundamental na provocação de emoções. Textos poéticos, contos dramáticos ou romances intensos têm a capacidade de transportar o leitor para universos distintos, onde suas próprias vivências e emoções podem ser revisadas e ressignificadas. E é isso que a editora nos permitiu ao colocar, em suas organizadas páginas impressas, o lirismo de Correia.

Na orelha de Laboratório de Incertezas, Vagner Amaro, editor do grupo em questão, responsável pela publicação da coletânea, destaca as subjetividades de Wesley Correia, um homem negro, professor e nordestino que expressa sua consciência sobre o espaço social que ocupa em suas composições. Correia se aventura a explorar suas experiências pessoais e traduzi-las em poesia, utilizando sonoridades e escolhas rítmicas distintivas que revelam sua identidade e trajetória. O livro é estruturado em quatro partes, cada uma iniciada com epígrafes de figuras relevantes para Wesley Correia, como Gilberto Gil, Carlos Assumpção, Rita Santana e Lívia Natália. Essas referências enriquecem a obra, conectando as ideias e experiências de Correia a um contexto mais amplo, que valoriza a diversidade e a riqueza da cultura negra, além de enfatizar a influência de outros artistas significativos em sua formação como poeta. E, como já mencionado, mas em outras palavras, ao longo de sua leitura, o livro me fez repensar o sentido da poesia em nossos dias.

A tessitura do poema é uma arte sutil que envolve a combinação de sons, ritmos e imagens para evocar emoções profundas e instigar reflexões. Muitas vezes, o poder do verso reside em sua capacidade de tocar o leitor de maneira que a brutalidade do cotidiano fugaz, vertiginoso e cada vez mais indelicado, traz palavras comuns que não conseguem. Em um mundo marcado pela superficialidade da comunicação, a poesia se destaca como um espaço onde sentimentos indizíveis podem ser expressos de forma enigmática, permitindo que o leitor se conecte com experiências universais. Foi assim que me deparei com a coletânea de Wesley Correia em Laboratório de Incertezas. Mais envolvido pela prosa e sem muita conexão com os elementos que engendram a teoria da lírica, tomei a publicação para leitura e confesso que, diante do que contemplei, estive diante de momentos de muita identificação. Uma característica que torna o poema uma forma de expressão tão poderosa é sua habilidade de condensar experiências complexas em poucas palavras.

Cada verso pode funcionar como um fragmento de realidade, reminiscências que tocam a alma. Por exemplo, quando um poeta escreve sobre a perda, ele pode utilizar imagens e metáforas que recorrem à memória sensorial, permitindo que o leitor sinta a dor do luto, mesmo que nunca tenha passado por uma experiência semelhante. É assim que nos sentimos diante de O Corpo do Meu Pai, um dos poemas que integram a publicação. Essa capacidade de transmitir o que é indizível faz da poesia uma forma de comunicação única, onde o leitor é convidado a imaginar e sentir individualmente. Além disso, as nuances da linguagem poética frequentemente criam um espaço para múltiplas interpretações. Um verso pode ser lido e relido, sendo reinterpretado diante de novas leituras. Essa ambiguidade proporciona uma riqueza de significados que desafiam os limites do que se pode expressar através da linguagem. O ritmo e as sonoridades dos versos também desempenham um papel crucial. A musicalidade da poesia pode evocar emoções que as palavras, isoladamente, podem não transmitir. Um verso que flui com leveza pode transmitir alegria, enquanto outro, pesado e abrupto, pode evocar tristeza ou angústia. Wesley Correia faz isso com competência ao longo de suas composições que enlaçam lirismo, sem deixar de tecer algumas críticas sociais profundas, citar seus lugares de fala, mencionar Marielle Franco, etc.

Assim, ao lidarmos com aquilo que muitas vezes parece indizível, a poesia consegue abrir espaço para o “desconhecido”. A experiência estética proporcionada por um poema pode tocar mistérios da existência, temas como amor, morte, solidão e anseios humanos universais, que, de outra forma, poderiam ser esquivados pelo discurso direto e objetivo. E assim se dispõem os poemas de Correia, leitura que em muitas passagens se torna um refúgio para o inexplicável, um convite a explorar o que reside no mais íntimo do nosso ser. Tomado pelo constante rompante da era das redes sociais, onde tudo que sentimos e fazemos, postamos, muitas vezes me vi diante do ímpeto de fotografar um dos poemas da coletânea e compartilhar a minha recepção com outras pessoas, tamanha a identificação com o que era dito pelo eu-lírico da publicação deste competente poeta baiano. Em linhas gerais, a tessitura de seus poemas nos apresenta uma rede intricada que nos permite explorar o indizível e nos comover de maneira enigmática. E, curioso, é que em suas composições mais simples, em específico, nos aspectos estruturais da lírica, Wesley Correia nos faz indagar sobre a vida.

De todos, Sim é o poema que mais me tocou. Como se diz em algumas reflexões teóricas do campo da literatura, depois de composto e publicado, o conteúdo literário passa a ser do leitor, deixando de pertencer ao autor. Salvaguardadas as devidas proporções reflexivas, foi isso que pensei ao me deparar com esta poesia sobre como devemos lidar, com resiliência, diante das negações diversas de uma sociedade estruturada por cruéis dispositivos de poder que constantemente nos massacram. Outro destaque é o tom instigante em Aviso, poema que nos faz acreditar que, diante de experiências negativas, podemos arrancar instantes de aprendizagem e esperança. Interessante também o posicionamento político do eu-lírico em Negrada, um dos tantos diálogos entre as artes em Questão, as angústia cotidianas nos versos de Noite, o desapontamento diante dos relacionamentos na estrutura poética de Lua em Peixes, as consequência do destino e o tom memorialístico no tocante Sobrevida, as decepções de sua mãe e, concomitantemente, as suas, com uma figura de confiança que se mostrou a pior das traidoras em Feliz Natal. Em Laboratório de Incertezas, Wesley Correia nos coloca diante da ousadia de abraçar a dúvida. E essa é a grande magia de sua poesia.

Laboratório de Incertezas (Brasil, 2020)
Autor: Wesley Correia
Editora: Segundo Selo
Páginas: 148

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