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Crítica | Lady Snowblood: Vingança na Neve

por Ritter Fan
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Não há como fugir da menção, então já vou começar por ela: sim, Lady Snowblood é a maior inspiração de Quentin Tarantino para Kill Bill, com diversos elementos retirados diretamente do clássico nipônico setentista de Toshiya Fujita, como a trama geral de vingança por uma mulher, o treinamento de uma garota por um mestre que não tem dó, nem piedade, a divisão em capítulos, algum grau de não-linearidade, certas ambientações e até mesmo o uso de animação em determinada altura (no caso mangá) e o uso da canção Shura no Hana, interpretada pela própria Meiko Kaji, que vive a personagem do título, codinome de Yuki Kashima. Mas essa constatação não detrai da obra de Tarantino e não afeta a principal para além de chamar atenção para sua existência para novas gerações, o que é sempre positivo, com até mesmo Kaji tendo saído de sua aposentadoria e voltado à gravar canções depois do lançamento dos filmes de 2003 e 2004.

Ultrapassado esse ponto, Lady Snowblood: Vingança na Neve que se tornaria o primeiro de dois longas protagonizados pela jovem assassina lançados em dois anos seguidos (mais uma semelhança com Kill Bill, aliás), é baseado em um mangá homônimo de Kazuo Koike e Kazuo Kamimura e publicado entre 1972 e 1973 e lida mais do que com uma mera história simples de vingança. Sim, trata-se de uma jovem que deseja se vingar do assassinato do pai e do irmão e dos estupros, prisão e morte no parto da mãe e há sangue esguichando para todos os lados no melhor estilo da época, mas os pontos nodais de toda a construção do roteiro de Norio Osada está, primeiro, na suprema injustiça que é gerar um filho ou uma filha unicamente com o objetivo de fazê-lo herdar o desejo de vingança – o equivalente a uma maldição, diria – e de tornar possível a execução da vendeta e, segundo, e talvez mais importante, o quão vazio e despropositado é o ato de vingança em si.

Se o primeiro ponto já fica evidente pelas sequências em que a assustadora concepção de Yuki é explicada em detalhes sob o ponto de vista de sua mãe, com a direção de Fujita trabalhando ângulos radicais de certa forma para indicar a torpeza dessa ideia, o segundo é estabelecido pela segunda vítima da jovem que sempre usa sua katana escondida em uma sombrinha. Novamente, o diretor é cuidadoso em criar contrastes, pois a primeira vítima de Yuki é revestida de todos os predicados para que não sintamos nada por ela que não seja no mínimo indiferença por sua morte, isso quando não torcemos pela morte violenta do sujeito. A segunda vítima, muito ao contrário, é um pobre coitado viciado em álcool e jogo que fecha os olhos para a forma como a filha ganha dinheiro para genuinamente ajudá-lo. Há toda uma construção delicada para que haja um equilíbrio de propostas que nos indaga se a vida vazia do homem já não seria castigo suficiente – e talvez ainda mais terrível – para ele do que uma morte rápida à beira do mar.

A própria forma como a beleza incontestável de Meiko Kaji como Yuki é trabalhada é algo que merece nota e fala muito do desejo de vingança em si. Yuki não é mais do que um espectro, um fantasma acorrentado a uma missão de que não pode fugir e a maquiagem empalidece a atriz para além do tradicional uso do tom “marfim” justamente para marcá-la dessa forma por grande parte da película. É até mesmo possível interpretar que Yuki é mesmo um demônio Asura que sua mãe diz que ela é quando a menina nasce, algo que o final do longa, que empresta uma aura levemente sobrenatural, acaba espertamente reiterando. No entanto, o que realmente fica é que Yuki é uma alma penada, alguém que vaga pelo mundo para matar, para vingar-se de pessoas que ela não conhece pela morte de pais que ela jamais viu, com cada assassinato sugando mais e mais de sua vitalidade.

Apesar da didática, mas, em última análise, desnecessária divisão em capítulos lineares, cada um com títulos extravagantes, não gosto da forma como a direção de Fujita e a edição de Osamu Inoue lidam com os flashbacks que criam a sensação de “semi-linearidade” narrativa. Os cortes abruptos quebram a fluidez da trama, muitas vezes impedindo que uma história completa seja contada sem que ela seja alvejada por retornos ao passado que, mesmo acrescentando informações, parecem deslocados. Muito claramente faltou finesse a Fujita para tratar a decupagem com o cuidado que uma estrutura assim exigia, por vezes me fazendo pensar se não seria melhor simplesmente tornar toda a narrativa 100% linear, rearranjando os flashbacks em ordem cronológica. Por outro lado, a fotografia de Masaki Tamura é muito eficiente ao lidar com os ambientes variados, por vezes até mesmo arriscando planos gerais que se aproveitam bem dos acidentes geográficos, mas especialmente criando um ar condizente com a natureza fantasmagórica de Yuki, algo que é trazido diretamente para o “chão” – no bom sentido, por Fujita e o uso generoso da sangue bem vermelho, depois dos mais variados cortes da lâmina da protagonista.

Lady Snowblood: Vingança na Neve, portanto, consegue oferecer um prato cheio a quem procura um filme de artes marciais com o que é essencialmente uma ronin mulher, ao mesmo tempo que eleva o nível da conversa em alguns degraus ao relativizar o show sanguinolento com um subtexto que condena a própria existência de Yuki da forma como ela é apresentada, criando uma personagem lindamente assustadora e letal, mas profundamente trágica e triste. A missão de vingança da jovem é um peso em seus ombros, mas que ela, ironicamente, nem consegue percebê-la como tal, o que torna tudo ainda mais pesado e sensacional.

Lady Snowblood: Vingança na Neve (Shurayukihime – Japão, 1973)
Direção: Toshiya Fujita
Roteiro: Norio Osada (baseado em obra de Kazuo Koike e Kazuo Kamimura)
Elenco: Meiko Kaji, Mayumi Maemura, Kō Nishimura, Toshio Kurosawa, Masaaki Daimon, Miyoko Akaza, Eiji Okada, Sanae Nakahara, Noboru Nakaya, Takeo Chii, Hitoshi Takagi, Akemi Negishi, Yoshiko Nakada, Rinichi Yamamoto
Duração: 97 min.

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