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Crítica | Lamb (2021)

Quando a adoção vira posse.

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Sinto que Lamb (2021) será um filme que alimentará, por algum tempo, o surto coletivo gerado por rala cinefilia e comparações sem critério do chamado “pós-terror“. Isso porque este longa do diretor Valdimar Jóhannsson toca em temas que os contaminados pelo surto gostam de apontar como “coisas nunca antes vistas na História do cinema, dentro desse gênero“, especialmente em sua esfera simbólica e pela geração de algum medo fora do clichê/clássico como amplamente se conhece. Lamb é um terror que não vai fazer nenhuma espinha gelar. Sua intenção é atingir outros lados do entendimento e da percepção macabra individual do público, fazendo-o pensar sobre forças da natureza dentro de uma esfera fantasiosa, embrulhada num drama familiar onde o luto é dominante.

O ponto de vista que a câmera de Jóhannsson nos oferece, na abertura, lança as sementes do que teremos desenvolvido no filme. A respiração ofegante e a altura em que a câmera está indicam o corpo de uma criatura ou de um homem de grandes proporções. Em alguns minutos, a montagem faz um trabalho limpo e direto que nos permitirá tecer a primeira linha interpretativa sobre Lamb, dentro do campo religioso/cristão. O olhar assustado das ovelhas e a clara indicação de que uma criatura acabou de fazer sexo com um desses animais atiça a curiosidade. Para quem foi ver o filme depois de saber pelo menos da existência de um “bebê ovelha“, tem aí a indicação de uma resposta sobre como um bebê desses se tornou possível — embora a resposta definitiva só venha mesmo no final do filme, abrindo mais uma linha interpretativa, ancorada em uma frase dita por Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) que alia a criatura a um elemento mitológico/folclórico, fazendo-nos olhar para o lugar mais óbvio possível: O Grande Deus Pã, de Arthur Machen.

O que me chama bastante a atenção no roteiro de Sjón e Jóhannsson é que o cotidiano do casal Ingvar e Maria (Noomi Rapace) é quem puxa a história, e não o suspense em torno de uma criatura misteriosa que faz sexo com ovelhas e gera criaturas híbridas, parte humano, parte animal (importantíssimo manter a dualidade da pequena Ada aqui: ela não é um Ser definitivo. Ela é, em tudo, plural, sendo essencialmente parte de duas espécies… ou de uma espécie que magicamente incorpora duas). Os olhares entre Ingvar e Maria, suas conversas triviais, a fotografia sempre fria ao seu redor (com exceção dos momentos em que ajudam no parto das ovelhas, por um motivo dramaticamente claro) e o peso do luto tomam conta da primeira parte do filme, que é definido pelo isolamento da dupla nesse espaço geográfico sem interferências externas e onde coisas inexplicáveis podem acontecer.

Quebrando o encadeamento mais convencional, o diretor não torna a aparição de Ada um ponto de medo. Ela não vem trazer a danação para o casal ou dar início a coisas terríveis. Não há uma função específica para esse híbrido no mundo… até que os humanos aplicam a ele uma função. Uma função familiar, onde utilizam dessa vida para curar a falta de uma outra vida. A naturalidade com que lidam com o nascimento bizarro, os olhares que trocam e a aceitação quase fatalista de Maria, na cena final, nos indicam que provavelmente não era a primeira vez que isso acontecia para eles. Independente de qualquer coisa, o filme não está nem um pouco preocupado em teorizar sobre Ada, sobre a essência de sua existência (ou a de seu pai). O filme expõe essas existências como um fato dado, e a partir dele é que constrói os relacionamentos humanos com criaturas sobrenaturais; uma troca entre partes diferentes da natureza que leva a ações violentas e, como sempre acontece com forças naturais inexplicáveis, termina de forma violenta.

Ao tomar para si a filha de um sátiro, de Pã ou seja lá de que figura estamos falando, o casal protagonista ativa uma falha na natureza à sua volta, situação que se agrava quando a forte noção de posse impede que a dupla veja Ada como um Ser de duas naturezas. A piora nesse desequilíbrio acontece quando Maria mata a mãe-ovelha, que sofria exatamente o mesmo que Maria estava sofrendo antes da chegada dessa (nova) Ada. Há um ciclo de dor que ronda Maria e Ingvar, mas quem parece sofrer realmente suas consequências é a mulher, porque dela parece partir todas as ações decisivas, então o roteiro a trata como “a raiz dos males” daquela propriedade. Embora Ingvar morra, quem realmente padece é Maria, que fica viva não apenas para ver uma criatura levar sua filha embora, mas também chorar a perda do marido e o fato de ter mandado o cunhado embora.

Quando Pétur (Björn Hlynur Haraldsson), o irmão de Ingvar, entra em cena, o filme se desequilibra grandiosamente. Sua figura representa a ausência externa que não existia, mas trata-se de uma interferência que não tem propósito. Nesse bloco, a direção muda de abordagem e investe bastante em um suspense que não dá em nada e nem serve para fortalecer ou minar a existência de um personagem. A impressão sombria em torno de Pétur se dissipa, e a promessa de “agente do caos” torna-se a bagunça gerada por um agente passageiro que está o tempo inteiro motivado por elementos clichês e não consegue se enquadrar organicamente naquilo que o diretor já havia construído.

A despedida dessa força externa, porém, é sentida pela natureza como um sinal. A paz e a felicidade que então poderiam reinar são negadas pela criatura que ouvimos no início do filme e que, nesse ponto, se revela por completo. O horror ganha ares mitológicos, fabulares, e talvez por isso mesmo perca o peso que normalmente costumamos atribuir ao gênero. A verdade é que a intenção da obra é discutir as consequências de interferências dos humanos em situações inexplicáveis, sempre acreditando que tudo ao seu redor está pronto para servi-los e fazer com que sofram menos. Lamb atesta que não é bem assim. Existem forças que são pacientes e esperam até cobrar o preço devido. Mas para qualquer ação violenta, para qualquer retirada brusca, para qualquer grito de posse absoluta que a humanidade faz do mundo natural ou das coisas inexplicáveis à sua volta, lhe serão retiradas coisas na mesma medida. Primeiro tornando sua existência entre insuportável e impossível. E depois extinguindo sua própria existência.

Lamb (Islândia, Suécia, Polônia, 2021)
Direção: Valdimar Jóhannsson
Roteiro: Sjón, Valdimar Jóhannsson
Elenco: Noomi Rapace, Hilmir Snær Guðnason, Björn Hlynur Haraldsson, Ingvar Sigurdsson, Ester Bibi
Duração: 106 min.

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