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Crítica | “Laurel Hell” – Mitski

Uma evolução natural que mostra novas faces de Mitski.

por Matheus Camargo
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“How do other people live?
I wonder how they keep it up
When today is finally done

There’s another day to come

Then another day to come”

Na última década, dentro do cenário indie rock, poucos nomes foram tão importantes para o caminhar do gênero como o de Mitski, em sua eterna busca pela dissecação de seus sentimentos. Lançado há pouco mais de dez anos, seu primeiro álbum, Lush, já revelava sua maior característica: o lirismo direto, cruel, frio mas capaz de entrar em contato com as dúvidas e incertezas mais profundas do ser humano. Sua música gritava revolta e decepção, sentimentos que se moldaram entre o piano e a guitarra, entre gritos estridentes de “Kill me, Jerusalem” ou na vulnerabilidade de um sôfrego “Mom, am I still young? / Can I dream for a few months more?”. Seus sonhos se realizaram e a artista conquistou um culto, que foi pego de surpresa com a mudança repentina (mas necessária) de Be The Cowboy, álbum de 2018 que começou a explorar a expressão de sua conturbação por meio de outras sonoridades. Fruto dessa transformação, Laurel Hell soa exatamente como deveria: uma evolução natural, orgânica, mas que ainda abre espaço para surpresas e quebra os paradigmas impostos pela própria artista. Há revolta, há decepção, mas se expressam de forma madura, sabem quando explodir ou implodir, sabem quando dar espaço ao introspectivo e quando dar espaço a cólera. Em todos os caminhos que segue, revela a grandiosidade e dualidade que só é encontrada no trabalho de Mitski.

Valentine, Texas não introduz apenas o ouvinte, mas abre o álbum de forma que a artista também esteja reentrando num lugar em que ela não esteve por muito tempo. Como num retorno para casa, começa com a incerteza de suas facetas, assombrada pelos lados que nunca mostrou. Explode ao encontrar luz em sua escuridão, sintetizadores e pianos tomam fôlego enquanto a voz descreve os fantasmas que lentamente se formam acima dela. É uma forma poderosa de criar atmosfera, de te introduzir em seu cosmos de dor mas, também, entendimento, conciliação com seus sentimentos. Esse conformismo é novo, racional, e persiste por todo o álbum, como vemos em Working For The Knife. A urgência por se compreender confronta a realidade, dentro do capitalismo e da vida adulta, a única compreensão que lhe parece indubitável é a de que não há espaço para a libertação. É assim que a música segue, sem refrão, sem catarse. É a negação da primeira faixa. Assim que Mitski entende o lugar em que ela está, também entende o cansaço que é sentir demais num mundo que não reconhece a humanidade. Como numa confluência entre seus rios sonoros, reúne elementos do seu rock particular e novas ondas eletrônicas, que só não ressoam mais que sua letra dilacerante. O clipe é essencial e adiciona uma camada ainda mais profunda à canção, quando após tanto tempo seguindo os padrões metódicos sociais, deixa a sua expiação despontar frente aos nossos olhos.

Abrindo as portas para o pop, Stay Soft é dançante e divertida, mas sua melodia convidativa engana o ouvinte ao tratar das diferentes formas que o trauma nos molda e o quão influente é em nossas relações. Abrir seu coração deixa de ser algo belo, porque inclui derrubar as barreiras que os amores passados levantaram e deixar que o outro enxergue as suas cicatrizes. Ao descer novamente, Everyone conversa com o passado de Mitski de uma forma assombrosa. Se Nobody era sobre a solidão irremediável, a nova faixa conta lentamente os temores de ter tantos olhos apontados para você. A chegada repentina do reconhecimento a fez confrontar o lado obscuro do holofote, cada verso é uma nova peça absorvida pelo instrumental crescente. É a antecipação perfeita para Heat Lightning, uma das minhas favoritas de sua carreira. Despida das produções grandiosas, o sentimento de impotência diante da tormenta de emoções se torna mais real a cada repetição e a sua devastação é silenciosa, um apocalipse sereno que começa e acaba junto a cada dia. A forma que descreve os pensamentos intrusivos revela seus próximos passos: “On the ceiling dancing are the things all come and gone”.

Apesar das rendições, encontra na dança uma nova forma de libertação. The Only Heartbreaker é uma mistura estrondosa dos sons que construiu e dos sons que decidiu explorar, mas feita de forma magnífica e magnética. Rigorosamente estruturada, é uma das melhores músicas provenientes do renascimento dos anos oitenta, sem receios de aceitar o seu papel de imperfeita, levando nas costas o mundo de erros e responsabilidades de uma relação que só respira pelos seus pulmões. Love Me More vem como um contragolpe, com uma letra dolorosa que implora por amor, por um sentimento que preencha o vazio, as brechas deixadas por ser o único pilar que sustenta um relacionamento são tapadas por desespero. Sua ânsia simplesmente funciona e move a faixa em interpretações, podendo se tratar da necessidade de se sentir amada, tanto pelo público como por outro alguém. Mitski se esgota de tanta urgência por apreço. There’s Nothing Left For You é o retrato perfeito não só da exaustão causada pela busca por validação, mas da euforia instantânea, poderosa, e, consequentemente, do vazio que se instaura assim que tudo se acaba, o sentimento de ter entregado tudo e não ter sobrado nada para si mesma. Sabe usar, por meio do instrumental, do clímax e da quebra, do topo e da queda.

Ainda que mergulhados em instrumentais dançantes, seu coração partido é o traço que canta mais alto. É o caso de Should’ve Been Me, uma canção radiante com breaks de tirar o fôlego entre refrãos, mas basta olhar entre os detalhes para perceber a valsa entre solidão, rejeição e o processo nada linear da superação. Ao olhar para as últimas faixas de todos os álbuns anteriores, é fácil perceber uma norma: todas soam melancólicas, encorpadas em emoção, angústia ou nostalgia. Suas canções mais vulneráveis sempre fecharam os seus álbuns: Class Of 2013 e o pesar de não saber se há um lugar no mundo no qual você pertença, ou as lembranças devastadoras que Two Slow Dancers resgata, todos os seus discos terminam num tom de desesperança. Por isso, foi uma surpresa quando I Guess, tão densa, bela e enlutada, não encerrou o trabalho com o seu abatimento ácido: “I guess this is the end / I’ll have to learn to be somebody else”. Na verdade, foi uma surpresa esperançosa.

Escutar os sintetizadores brilhando em That’s Our Lamp foi um alívio porque, ainda que pareça uma despedida aflitiva, com o instrumental desaparecendo enquanto Mitski relembra “That’s where you loved me”, acredito que estabelece um futuro glorioso, um pouco mais otimista. O sentimento que sobra é o mesmo de sempre: eu preciso de mais. E, ao mesmo tempo, estou satisfeito e feliz por ter uma nova companhia para decifrar e dar múltiplos significados para cada verso. É o seu álbum mais acessível e não chega a errar gravemente em nenhum momento. Tudo que faz é encorpar as tristezas em experimentações alegres, dando espaço para a luz entrar. Assim que entra, ilumina um lugar novo mas desconhecido, amedrontador. Laurel Hell te dá possibilidades e coragem de descobrir quem existe por trás do trauma. Novas montanhas se formam através da poeira das memórias que não te deixam seguir, mas resta a você trilhar um caminho certamente tempestuoso e, finalmente, recompensador. O mundo continua não tendo lugar para você, mas essa certeza nunca soou tão gratificante, porque nos dá a oportunidade de viver infinitas vidas numa só. “Who will I be tonight? Who will I become tonight?”

Aumenta!: Love Me More
Diminui!:
Minha canção favorita do álbum: Heat Lightning

Laurel Hell
Artista: Mitski
País: Estados Unidos
Lançamento: 04 de Fevereiro de 2022
Gravadora: Dead Oceans
Estilo: Synthpop, Art pop, Rock

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