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Crítica | Leave the Gun, Take the Cannoli, de Mark Seal

Uma obra-prima sobre uma obra-prima.

por Ritter Fan
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Existe um número muito grande de obras sobre os bastidores de produções cinematográficas, mas muito poucas são realmente valiosas e profundas, e, dentre elas, quase nenhuma é contada de maneira tão interessante como o minucioso trabalho do jornalista Mark Seal sobre a produção de O Poderoso Chefão, um dos filmes mais importantes da História do Cinema. O pesquisador e escritor produziu um livro não ficcional, de cunho jornalístico, mas que tem que a desenvoltura de um muito bem escrito romance que usa como fonte as mais diversas obras que direta, indiretamente, exclusiva ou não-exclusivamente abordam o longa-metragem, mas não se limitando a repetir o que outros escreveram, mas sim chegando às suas próprias conclusões e, por muitas vezes, entrevistando diretamente os envolvidos neste épico sobre família e capitalismo tendo como pano de fundo a Máfia nos EUA.

Tendo lido já diversas obras sobre o filme, inclusive e especialmente a sensacional crônica do próprio Mario Puzo que ele publicou antes de o filme chegar aos cinemas; a inflada, mas fascinante autobiografia The Kid Stays in the Picture, do então todo-poderoso chefão da Paramount Robert “Bob” Evans, o econômico e honesto diário de Ira Zuckerman, assistente de Francis Ford Coppola, e as caóticas próprias anotações do diretor na rica “bíblia” que ele fez com páginas do livro original, anotações manuscritas e versões alteradas do roteiro original de Puzo, devo dizer que o livro de Seal é a mais completa, imparcial e detalhada abordagem sobre absolutamente tudo que fez de O Poderoso Chefão o filme que ele é, começando pela contextualização sobre o crime organizado no EUA, especialmente sobre a Cosa Nostra, claro, até a cerimônia do Oscar que terminou de coroar o longa em 1973. Pode parecer muita coisa em nem tantas páginas (sem fotografias e outros embelezamentos inúteis) assim, mas Seal, como todo bom romancista, parece magicamente saber lidar com enorme fluidez até mesmo quando lida com momentos áridos como as reuniões entre os criativos-chave da produção, capitaneados por Coppola.

Mas é importante afirmar que essa imparcialidade que mencionei não quer dizer frieza, nem distanciamento. Seal é muito claramente um devoto do filme (assim como eu, mas quem em sã consciência não seria, não é mesmo?) e isso transparece a cada linha que ele escreve, começando com sua clara alegria por relatar sua entrevista com o lendário Evans antes de ele falecer em 2019 e que abre seu livro, mas passando por cada grande momento que nos permite acompanhar, passo-a-passo, praticamente tudo de mais importante da produção e nos fazendo entender as mentes dos grande nomes que a tornaram possível, especialmente os já citados Puzo, Evans e Coppola, mas, também, claro, o produtor  Albert “Al” Ruddy, responsável pelo duro cotidiano desta obra-prima da Sétima Arte.

Mesmo quem – em algum arroubo de insanidade – não se interessar pelo filme em si, mas por obras cinematográficas em geral, terá um valioso tesouro em mãos, pois O Poderoso Chefão foi uma produção extremamente – ênfase no extremamente – conturbada que tinha absolutamente tudo para dar muito errado. O cabo de guerra entre o lado criativo e o lado financeiro, que foi gigantesco e em determinados momentos irritante e em outros hilário (tendo o benefício de saber o que o hoje sabemos, claro), é apenas a ponta do iceberg, com uma inacreditável interferência constante, com direito a um espião plantado no set, de Charles Bludhorn, presidente da Gulf+Western, conglomerado dono da Paramount Pictures na época. Afinal, o filme já começou bombardeado inclementemente pela própria Máfia, usando como “disfarce” a recém-criada – por ninguém menos do que Joe Colombo, líder de uma das “Famílias” novayorkinas – Liga Ítalo-Americana Anti-Difamação que tinha como principal objetivo impedir que o filme fosse feito. Em outras palavras, tudo o que poderia dar errado em uma produção cinematográfica deu errado – ok, não chegou ao ponto tragicamente cômico do amaldiçoado filme sobre Dom Quixote de Terry Gilliam, mas era um outro tipo de produção, bem mais modesta – e o livro relata tudo como um bem construído thriller de deixar o leitor roendo os dedos.

E um dos grandes trunfos de Mark Seal é ele saber quando se aproximar e quando se afastar das fontes mais conhecidas que falam da tumultuada produção. Afinal, muitas delas são ou foram pessoas diretamente envolvidas na criação do filme e, com seu sucesso absoluto, é de se esperar que cada um arvore para si todos os méritos pelo ocorrido. O autor sabe elogiar, sabe falar mal, mas, sobretudo, sabe investigar para chegar a um meio-termo que pode não ser a verdade absoluta – essa nós nunca saberemos com certeza -, mas que soa como algo bastante razoável, como é o caso do envolvimento efetivo da Máfia com Al Ruddy, algo que ganha contornos de lenda em relatos mais apaixonados e menos centrados como o de Seal.

Leave the Gun, Take the Cannoli: The Epic Story of the Making of The Godfather é uma conquista monumental na categoria de obras sobre bastidores de obras cinematográficas por uma conjunção rara de fatores que vai desde a escolha de uma obra de enorme importância para o Cinema mundial, passando por um trabalho de pesquisa minucioso que resulta em um texto que pode ser lido como um thriller carregado de tensão e de personagens reais vívidos e apaixonantes e irritantes na mesma medida. Depois que a última página do livro é virada, desafio qualquer um a não ter uma outra – e ainda mais significativa – apreciação por O Poderoso Chefão, uma que transforma, contextualiza e, acima, de tudo, valoriza cada sequência inesquecível que vemos na tela deste épico.

Leave the Gun, Take the Cannoli: The Epic Story of the Making of The Godfather (EUA, 2021)
Autor: Mark Seal
Editora: Gallery Books
Data de publicação: 19 de outubro de 2021
Páginas: 448

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